Os movimentos populares são os construtores da democracia

 

Hervi Lara Bravo

Durante a semana de 14 de outubro de 2019, estudantes secundaristas chilenos protestaram em razão do aumento (de US$0,04) na tarifa do metrô, enquanto fi zeram um apelo à população, na tentativa de evitar,
massivamente, o pagamento da passagem, levando a uma repressiva resposta por parte das autoridades. No entanto, a manifestação seguiu somando-se a outras, o que a tornou ainda maior, elevando-a a um caráter transversal, o qual expressava as demandas sistematicamente silenciadas pelas autoridades.
Foi, então, na noite de 17 de outubro, que famílias inteiras ocuparam as ruas, denunciando a violência policial e, não só protestando contra o aumento do valor da passagem, mas também contra o modelo econômico que gera as desigualdades, ao enriquecer a alguns poucos, às custas do empobrecimento da maioria. Assim, o Chile
rebelou-se contra o neoliberalismo, imposto em razão da desarticulação dos movimentos sociais, cujo desenvolvimento sempre recebeu, como resposta, a “vingança” da oligarquia.
Ao longo da história, quando as organizações sociais realizaram ações reivindicativas, o que se viu foi uma reação
dos poderosos, que se utilizaram da repressão por meio da violência empregada por polícias e exércitos. É inegável que a maior ameaça para a oligarquia chilena tem sido o movimento dos trabalhadores organizados, que se expressa desde o fi nal do século XIX, em greves e comícios, cujas culminações têm sido grandes massacres, tais como em Valparaíso (1903), Santiago (1905) Antofagasta (1906), Iquique (1907) e os massacres após o golpe de Estado de 1973, entre muitos outros fatos.
Hoje, com o “estalo social”, afl orou “um Chile que conta com um fundo de pensões adequado, um sistema de saúde e de educação privados, estradas concessionadas, casas confortáveis, viagens ao estrangeiro, acesso às últimas tecnologias, empregos bem remunerados”. E “um outro que vai a pé, que percorre de ônibus longas e tediosas distâncias para chegar ao trabalho onde recebe maus tratos, baixos salários e humilhações”.
O país dos desempregados, dos que vivem em moradias básicas e de má qualidade; dos que recebem uma educação municipalizada, que “garante” baixos rendimentos; dos que residem em setores onde a vulnerabilidade,
a violência, a insegurança e a droga estão sempre presentes1. É dizer: o neoliberalismo destruiu a vida social, ao naturalizar a violação dos direitos fundamentais das pessoas. Vejamos, pelos meios de comunicação de massa, o sistema educativo e as autoridades, os quais se esforçaram em destacar que a sociedade é um mundo de competidores e que os triunfadores são aqueles que vencem no mercado.
Para tanto, foi e é enfatizada a mensagem de que o caminho do sucesso econômico do trabalhador não passa pela organização, a solidariedade e o sindicato, mas sim pelo esforço individual, a deslealdade com os pares e a subordinação aos que exercem o poder. Consequentemente, o Estado deixou de lado a sua responsabilidade como garantidor dos direitos econômicos, sociais e culturais, levando os pobres a se verem como culpados
da sua própria situação, seja por não terem competitividade ou pela sua ignorância, seja pelo pouco desejo de superação, a falta de criatividade ou de espírito empreendedor.
Desta forma, o éthos da sociedade chilena foi quebrado. Não há consciência ética, porque impera o espírito individualista. Portanto, também não há respeito pelos direitos humanos. Seus indicadores são a corrupção,
a criminalidade, a droga, a violência. E as respostas do sistema são: mais repressão, mais prisões, mais policiais e militares nas ruas. Desse modo, o chamado “crescimento econômico”, as modernizações, os ajustes, os quais não resolvem os problemas, mas levam à concentração da riqueza e, como sequela, à priorização absoluta do econômico, degradam a cultura, em meio a uma democracia sem conteúdo.
O indivíduo foi colocado acima da pessoa como ser social. E, com isso, as elites e os seus satélites carecem de solidariedade ao fecharemse em si mesmos, aumentando a desigualdade e fazendo emergir uma sociedade dividida, onde não há contato, e menos comunicação, entre as classes sociais, ratificando o fato de que “a violação dos direitos humanos, o sistema de brutalidade institucionalizada, o controle drástico e supressão de todas as formas de discórdia significativa são discutidos como um fenômeno só indiretamente ligado ou, na
verdade, completamente desvinculado das políticas clássicas de mercado livre absoluto que foram postas em prática pela Junta Militar”.
Não obstante, o dito plano econômico imposto no contexto chileno culminou no assassinato de milhares de pessoas, o estabelecimento de campos de concentração por todo o país, o encarceramento de mais de
cem mil pessoas em três anos, o encerramento dos sindicatos e das organizações vizinhas e proibição de todas as atividades políticas e de todas as formas de expressão». (...) Repressão para as maiorias e “liberdade econômica” para pequenos grupos privilegiados são, no Chile, as duas faces da mesma moeda”.
Mas, hoje, a revolta popular no Chile obrigou a oligarquia a reconhecer que o muro de contenção à dignidade do povo é a Constituição de 1980, imposta a sangue e fogo pela ditadura de Pinochet e o grande empresariado. A oligarquia e seus aderentes têm aceitado a possibilidade de uma nova Constituição democrática, mas colocando
muitos obstáculos à participação dos movimentos sociais. Tem medo das mudanças que o povo reclame.
Porque os movimentos populares, “os pobres, já não esperam e querem ser protagonistas, organizam-se, estudam, trabalham, reclamam e, acima de tudo, praticam essa solidariedade tão especial que existe entre os que sofrem, entre os pobres, e que a nossa civilização parece ter esquecido”. (...) “ Porque a luta dos movimentos populares nos faz bem a todos”.