Outra democracia: com igualdade de gênero

Outra democracia:
com igualdade de gênero
 

Maria Cecília DOMEZI


O paradigma dominante na modernidade estabeleceu que ser gente é ser cidadão, com garantia de dignidade e liberdade individual. Não se admite mais dominação do senhor sobre o servo. Os direitos civis, políticos e sociais originam-se na dignidade e na liberdade de cada indivíduo.

Mas esse indivíduo é abstrato e só aparece na forma masculina. Não tem emoções, desejos e afetos, porque essas experiências e sentimentos ficam excluídos dos espaços econômico, jurídico, científico, administrativo. Trata-se do indivíduo domesticado, enquadrado na mobilidade e na competitividade do mercado capitalista global. Nas regras de compra e venda, a liberdade humana, entendida como autonomia individual, é o mesmo que não ter dívida com ninguém. Daí que também esse indivíduo não tem obrigação com ninguém. Pode desfrutar do direito de ser «ele mesmo», fora da participação social, política e pública, preocupado somente com seu corpo, seguindo as preferências e possibilidades de consumo. Está certo que, como membro de uma nação, ele é estimulado ao altruísmo e até mesmo ao sacrifício de si mesmo. Porém, a liberdade individual dos cidadãos da nação pode não passar de uma máscara, que esconde graves injustiças e vergonhosas desigualdades nas relações sociais. E uma democracia de indivíduos abstratos será sempre uma democracia só para alguns segmentos privilegiados das sociedades.

Uma emancipação verdadeira não é possível com individualismo e exclusão dos outros e das outras. A pessoa humana individual amadurece à medida da sua afirmação como sujeito histórico. Com consciência das diferenças individuais, toma atitude a favor de relações humanas e sociais justas e igualitárias.

Riobaldo, personagem criado por Guimarães Rosa (Grande Sertão: veredas, 19a. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001, p. 74) assim diz:

Às vezes eu penso: seria o caso de pessoas de fé e posição se reunirem, em algum apropriado lugar, no meio dos gerais, para se viver só em altas rezas, fortíssimas, louvando a Deus e pedindo glória do perdão do mundo. Todos vinham comparecendo, lá se levantava enorme Igreja, não havia mais crimes, nem ambição, e todo sofrimento se espraiava em Deus, dado logo, até à hora de cada uma morte chegar. Raciocinei isso com compadre meu Quelemém, e ele duvidou com a cabeça – «Riobaldo, a colheita é comum, mas o capinar é sozinho...» – ciente me respondeu.

Na América Latina, as imensas maiorias de pessoas excluídas dos bens e dos benefícios indispensáveis para viver com dignidade e liberdade, têm, em sua cultura popular, inusitadas contribuições para uma democracia alternativa. O «capinar sozinho», o processo de emancipação do indivíduo, se faz ao mesmo tempo com consciência crítica, com religião, com comunidade e com responsabilidade pelo mundo. Quando a adesão religiosa é consciente e livre, e leva ao engajamento nas práticas solidárias e transformadoras, a devoção tradicional continua oferecendo o seu núcleo de sentido para a vida e o mundo, como um alimento vital.

Uma especial contribuição da cultura popular latino-americana, com suas múltiplas expressões regionais, é a de recriar e ressignificar imagens e conceitos impostos pelo patriarcalismo. Os colonizadores “cristãos» impuseram um deus patriarcal, distante e ameaçador, partidário dos privilegiados. E as maiorias colonizadas, empobrecidas e submetidas, através de criativos recursos culturais de sincretismos, ambivalências e hibridez, desenvolveram uma especial capacidade de resistir, através da religião, aos padrões rígidos das desigualdades estabelecidas. No imaginário popular, o referencial de uma antiga deusa, tanto mais poderosa quanto mais próxima das pessoas sofredoras e injustiçadas, possibilita constantes ressignificações da cultura e da religião e alimenta a atuação na história. Seja invocando a Pacha Mama, Iemanjá ou a Virgem Maria, é cada vez mais uma divina misericórdia que desmonta o sexismo prepotente e afirma uma relação de amor com Deus. Nas representações de Nossa Senhora, moreninha, índia e negra, expressa-se a grande Mãe da Compaixão, intimamente próxima e protetora, a cujo poder as pessoas espoliadas e excluídas têm pleno acesso.

Nas tradições da cultura popular latino-americana há também formas alternativas de relação solidária. São outras relações de reciprocidade, em redes de famílias, de vizinhança e de religião. A prática dos mutirões, as festas, os laços de compadrio, a relação com a família dos santos, tudo é perpassado de uma ética de obrigação uns com os outros. Cada pessoa se sente devedora da outra. No Cristianismo de libertação, esse sentimento alimenta vitalmente a solidariedade real e histórica que se vai ampliando em redes cada vez mais abrangentes e articuladas. A apropriação da Bíblia através de um método de leitura e interpretação que é popular, comunitário e libertador, tem favorecido um efetivo exercício de democracia desde a base. Todo este legado é favorecedor da superação das dominações sexistas, raciais, culturais e das dominações de toda espécie.

A tradicional prática da reciprocidade tem relação complementar com a moderna noção de democracia. O que antigamente era uma aliança entre grupos, agora se torna uma cadeia múltipla de interdependências, que atua na esfera das políticas públicas. As colaborações circulam, as relações se ampliam cada vez mais e as redes de relações instauram a grande comunidade solidária. Isso pode favorecer, de um modo especial, a justiça e a igualdade nas relações entre as pessoas de sexos diferentes. O moderno conceito de gênero é uma categoria de conhecimento que analisa as relações sociais entre os sexos. Essa categoria é importante para a reivindicação de direitos iguais. Mas a igualdade de direitos e de liberdade tem que se efetivar dentro de uma política das identidades, que leve em conta as particularidades das culturas. Também a heterogeneidade, as diferenças, os espaços fragmentados e não bem definidos.

O patriarcalismo já atravessou milênios, entrou invicto na democracia moderna e impera no século XXI. Continuam vigorando “papéis» atribuídos às mulheres, submetidas a uma sobrecarga de trabalho e a uma diminuição de benefícios em relação aos homens. É completamente absurdo o fato de se manter ainda hoje uma compreensão das mulheres como de natureza inferior aos homens, aquelas que necessitam ser comandadas por eles e que só se valorizam à medida em que os servem. É hipocritamente infundada a classificação do masculino como o ativo, pensante e dirigente, e do feminino como o passivo, passional, impuro e perigoso, permanentemente necessitado de controle. É pecaminoso excluir as mulheres do exercício de funções sagradas no campo das religiões.

Para se manter, a dominação masculina sobre as mulheres continuamente arranja justificativas filosóficas, teológicas, e até mesmo alega um determinismo biológico. No entanto, as desigualdades foram estabelecidas dentro das relações sociais, pela imposição de um segmento da humanidade. Convencionou-se que os homens brancos, especialmente os situados no hemisfério norte, detentores de poder econômico e político, são mais “indivíduos» e mais cidadãos que o restante da humanidade. E, nesse imenso restante, maior é a discriminação e a exclusão quanto mais as pessoas se aproximam do pólo inferiorizado: mulheres pobres, negras, indígenas, mestiças; pessoas com definições sexuais diferentes; pessoas de culturas diferentes; pessoas anciãs, crianças e jovens, bem como pessoas portadoras de necessidades especiais, consideradas improdutivas segundo as regras do mercado.

Não dá mais para denunciar o imperialismo e a dominação de classe sem lutar, ao mesmo tempo, pela justiça nas relações entre as pessoas individuais reais. As relações injustas não se dão somente quando um bloco inteiro se impõe sobre outro, mas também no tecido fino das sociedades, no cotidiano dos círculos familiares, na vizinhança, nas Igrejas, nos sindicatos, nos organismos de poder, no meio científico, nos movimentos populares, nos meios de comunicação social, nas escolas.

Felizmente, a prática de uma democracia alternativa, que inclui justiça nas relações de gênero, já aparece nas bases populares. Foi o que presenciei dentro de uma família brasileira, num assentamento do Movimento de Trabalhadores Sem Terra. Assim como o trabalho de agricultura, as tarefas domésticas eram ali assumidas tanto pelas mulheres como pelos homens. E as crianças, sempre bem observadoras, quando viam algum homem descuidar-se, deixando pratos e copos sujos para as mulheres lavarem, punham as mãos na cintura e cobravam: Cadê a relação de gênero?

Nas comunidades eclesiais de base tem crescido uma compreensão da Virgem Maria como companheira na caminhada que objetiva o Reino de Deus. A convicção de que o seu cântico profético exalta a opção partidária de Deus pelos pobres, segundo o testemunho dos evangelhos, inspira a luta pela justiça também nas relações de gênero.

O empenho na superação das desigualdades entre os sexos, desde os micro-espaços até os blocos imperialistas, não pode se separar da luta contra a fome e contra todas as injustiças. É preciso afirmar e fazer valer os direitos das mulheres, de todas as pessoas, grupos e comunidades, com a riqueza de suas diferenças étnicas, culturais, sexuais, individuais.

Não haverá democracia sem uma garantia de igualdade de direitos e de vida digna para todas as pessoas na face da terra.

 

Maria Cecília DOMEZI

São Paulo, SP, Brasil