Outra palavra é possível

Outra palavra é possível

Bartomeu MELIÀ


O que os Guaranis têm hoje senão a sua palavra?

A filosofia ocidental, tendo a Grécia como berço, seria também uma filosofia da palavra. Contudo, com o tempo foi desconfiando dessa palavra e ela foi usada como poder de dominação. Porém, almejamos novamente por uma palavra que não seja somente nossa, mas que acrescente algo, dialogada na liberdade. A palavra e sobretudo a palavra dada e recebida, volta a ser o centro de nosso afã. Se destruímos a palavra, já ninguém pode reconhecer-se nem em si nem no outro.

Para o guarani a palavra é tudo. E tudo para ele é palavra. A psicologia e a teologia guaranis são a peculiar experiência religiosa da palavra partilhada.

Quando escutamos os cantos dos Mbyá-Guarani, uma das etnias guaranis, tal como foram recolhidos pelo paraguaio Leon Dadogan no livro Ayvu Rapyta (Palavra Fundamental) nos damos conta de que estamos tocando o centro e a origem de toda a palavra humana.

O verdadeiro pai Ñamandú, o primeiro,

de uma parte de seu próprio ser de céu,

da sabedoria contida em seu ser de céu,

com seu saber que se vai abrindo como flor,

fez com que se engendrassem chamas e tênue neblina.

Tendo-se incorporado e erguido como homem,

da sabedoria contida em ser de céu,

com seu saber que se abre qual flor

conheceu para si a fundamental palavra que havia de ser.

Conhecendo já a palavra fundamental que havia de ser,

Da sabedoria contida em seu próprio ser de céu,

em virtude de seu saber que se abre em flor,

conheceu para si mesmo o fundamento do amor ao outro.

Tendo já feito abrir-se em flor o fundamento da palavra

que havia de ser,

tendo já feito abrir-se em flor um único amor,

da sabedoria contida em seu ser de céu,

em virtude de seu saber que se abre em flor,

fez com que se abrisse em flor um canto alentado.

(...) Depois de tudo isto, o verdadeiro pai Ñamandú,

que estará frente ao seu próprio coração,

a futura verdadeira mãe dos Ñamandú,

fez com que se conhecesse como (divinamente) celeste.

(...) Por terem eles assimilado já a sabedoria celeste de seu Primeiro Pai,

por terem eles assimilado já o fundamento da palavra,

por terem eles assimilado já o fundamento do amor,

as séries de palavra do canto esforçado,

e a sabedoria que se abre em flor, os chamamos:

excelsos verdadeiros pais-e-mães das palavras.

Este texto é um desses cantos que se pode escutar muitas vezes em forma de prece, que os Mbyá-Guarani entoam em suas reuniões rituais, porém também em sua casa, ao anoitecer ou ao amanhecer.

A vida do Guarani, em todas as suas instâncias críticas – concepção, nascimento, recepção do nome, iniciação, paternidade e maternidade, enfermidade, vocação xamânica e morte – e se define a si mesmo em função de uma palavra única e singular que faz o que diz. O homem, ao nascer, é uma palavra que se põe de pé e se ergue até sua estatura plenamente humana:

«Quando um ser está para tomar assento

que alegria aos adornados com suas plumas,

asas adornadas,

envia, pois, à nossa terra,

uma palavra boa que aí firme o pé»,

diz Nosso Pai Primeiro dos verdadeiros Pais das palavras de seus próprios filhos.

Os pais das palavras-almas, desde seus respectivos céus, se comunicam, ordinariamente, através do sonho, ao que vai ser pai. E é a palavra sonhada a que, comunicada à mulher, toma assento nela e começa a concepção do novo ser humano. É certo que se reconhece a necessidade das relações sexuais para a concepção, porém a criança é enviada pelos “de Cima” . “O pai a recebe em sonho, conta o sonho à mãe e esta fica grávida” (Egon Schaden). A palavra “toma assento” no seio da mãe tal como a palavra que desce sobre o xamã, este também sentado em um banquinho ritual em forma de “tigre”. Concepção de um ser humano e concepção do canto profético se identificam.

A história de nossa palavra

O mais importante, contudo, está na convicção de que a alma não nos é dada inteiramente pronta e sim que se faz com que a vida do homem e o modo de sua concretização acontece no seu mesmo pronunciar-se; a história da alma guarani é a história da palavra, a série de palavras que formam o hino de sua vida.

O guarani não “se chama” de tal ou qual maneira, e sim que “é” tal ou qual. Os Guaranis acham ridículo que o sacerdote católico tenha que perguntar aos pais da criança como vai chamar-se o filho. O nome é parte integrante da pessoa e é designado na língua guarani com a expressão ‘ery mo’ã a’, “aquele que mantém em pé o fluir do dizer” (Cadogan).

A educação do Guarani é uma educação da palavra e pela palavra, porém não é educado para aprender e muito menos para memorizar palavras já ditas (e menos ainda textos), e sim para escutar as palavras que receberá do alto, geralmente através do sonho, para depois poder pronunciá-las. O guarani busca a perfeição de seu ser na perfeição do seu dizer. Nós somos a história de nossas palavras. Tu és tua palavra, eu sou nossas palavras. Che ko ñandeva. Potencialmente, cada Guarani é um profeta - e um poeta -, segundo o grau que alcance sua experiência religiosa.

Com muita propriedade se fala que “toda a vida mental do guarani converge para o Mais Além. Seu ideal de cultura é a vivência mística da divindade, que não depende das qualidades éticas do indivíduo e sim da disposição espiritual de ouvir a voz da revelação. Essa atitude e esse ideal são os que determinam a personalidade” (Schaden).

Colocar-se em estado de escuta das palavras boas e formosas, inclusive com jejuns, continência sexual, observação de modos austeros de vida, abstinência no comer e no dormir, são práticas constantes nos Guaranis contemporâneos, especialmente entre os Mbyá.

A palavra não é ensinada nem aprendida humanamente. E, para muitos guaranis, torna-se insensato e até provocador pretender ensina-las às crianças na escola. A palavra é um dom que se recebe do alto e não um conhecimento aprendido de outro mortal.

A reciprocidade

Serão os guaranis uma espécie de monges da selva? O certo é que não são nômades nem se limitam a uma casa provisória, nem são coletores, qualidades que a antropologia clássica atribui como próprias de selvagens. São agricultores e costumavam viver em aldeias de três ou quatro casas grandes. Seu modo de vida tradicional, lamentavelmente, está desaparecendo. Desaparecidas as selvas e poluídas as águas em seu entorno, recebem como herança da “civilização” não só a pobreza como também a miséria.

Resta-lhes a palavra: o fato de saber a origem de sua palavra e o modo como ela acontece mediante o dom da comunicação. Assegurada a subsistência familiar, contudo há algo ou muito para dar. Este é o sentido da festa, do arete, do ‘dia verdadeiro’. No verão, quando é abundante a colheita de milho e não faltam outros produtos como a batata, feijão e abóboras, são freqüentes as festas.

À maneira de uma metáfora da economia de reciprocidade, a festa guarani supera a dimensão economicista, porém também a meramente simbólica. A festa não é o resultado de excedentes econômicos que nela sejam distribuídos igualitariamente; não é também a solução que podem ter encontrado como “primitivos” para um consumo comunitário dos recursos. A festa, não somente consome e distribui excedentes, mas ela os produz. Quando não há festas de participação, a produção econômica baixa sensivelmente. A festa é o princípio temporal e ‘filosófico’ da economia.

O dom, a dádiva, jopoi (etimologia: mutuamente mãos abertas) é a lei fundamental da economia guarani. Ao chegar o sistema de mercado, de compra e venda, os guaranis o denominam de crueldade egoísta; aplicam a essas ações o mesmo termo da palavra vingança: tepy; o preço das coisas é uma vingança; uma coisa cara é uma grande vingança.

O guarani é o que diz; ele mesmo é uma palavra. Não se chama assim ou assado; ele é seu nome.

Se nos perguntamos: Quanto tempo poderá durar este sistema? As selvas desapareceram e a fonte de recursos dos guaranis é cada vez mais o trabalho assalariado ou algumas ajudas provenientes de institui-ções públicas ou privadas. A terra é de direito comunitá-rio, porém está em rápido processo de deterioração. A ecologia guarani, nos pequenos refúgios que ainda res-tam, é difícil de ser mantida. Há motivo para se pensar que estamos no crepúsculo de uma noite sem dia.

Ser guarani comporta exigências que não podem ser descuidadas. Os guaranis são amáveis e abertos, porém suspeitam da colonização de mentes e almas escondida nos valores da civilização ocidental.

Seremos todos guaranis?

Os guaranis não são problema; são solução. Com sua palavra inspirada, com seus cantos e danças, estão convencidos de que podem salvar o mundo e a cada um de nós. É fácil escutar isto mais de uma vez ao participar em suas prolongadas orações. Com que consolo ouvia uma anciã, que dirigia o canto, dizer: “Tu que estás conosco, quando chegar o dia da grande desgraça, não estarás nas trevas” .

Nem todos podem e querem entrar nessa experiência. Para a maioria não é impossível. Porém, sem dúvida, é gratificante admirar esse crepúsculo de entardecer que já anuncia o crepúsculo da manhã. Não estranha que os guaranis tenham tantos admiradores. Podem ser percebidos como contemporânea memória do futuro, mais modernos e com mais sentido que os modos de vida que nos toca viver.

 

Bartomeu MELIÀ

Assunção, Paraguai