PARA DESCOLONIZAR A ÉTICA! RUMO A UMA ÉTICA CRISTÃ PÓS-CLERICAL

 

Pedro Pablo Achondo Moya

Nestes tempos de glocalidade, como gostam de dizer, a Igreja depois da Igreja possui um desafio revolucionário, qual seja, propor uma ética pós-clerical. É evidente que existe uma ética cristã, que, ao contrário da moral ou moralismos que provocam tanta ira e que já provocaram Jesus, se manifesta como misericórdia, justiça, compaixão e perdão.

A ética cristã é profundamente uma ética de compaixão e acolhimento. Essa ética brota da práxis de Jesus de Nazaré e está presente em seus gestos, palavras, ações e confrontos; que nos são transmitidas, particularmente, nos Evangelhos.

Começamos aludindo ao termo glocalidade, que há mais de uma década já soava forte. Era uma das palavras de ordem dos encontros alterglobalistas e das organizações sociais, que propunham outras formas de agir, resistir e existir. Movimentos ligados aos povos indígenas, sensibilidades ecológicas e diferentes buscas políticas, baseadas na autonomia dos povos, economias alternativas e modos de vida oprimidos e invisíveis. Tudo isso surgiu fortemente em meados dos anos 90, acompanhado de Fóruns e Encontros Mundiais em vários países. A globalização foi equilibrada a partir de uma perspectiva local. De alguma forma, à ocidentalização do mundo resistiram a partir dos territórios e suas particularidades.

O acima exposto perdeu força ao longo dos anos, devido as crises profundas em todo o planeta. Houve desgaste. Pelo menos em termos dessa energia e euforia dos primeiros anos. Em nível eclesial, a chegada de Francisco significou, sem dúvida, uma injeção de esperança e renovação; mas também se esgotou ao perceber resistências internas e uma profunda crise de abuso sexual, poder e consciência. Sabemos que o surgimento dos movimentos de alterglobalização percorreu um trilho diferente da Igreja institucional, mas não poucos aspectos desses movimentos não só tiveram cristãos, teólogos e teólogas em suas bases, mas em suas fontes ético-políticas e teóricas o pensamento teológico latino-americano, em particular a teologia da libertação. Ali respiraram, novamente, seus afluentes, lutas, compromissos e esperanças. Sobre essas travessias e fertilizações mútuas também há bastante literatura.

E as igrejas? As igrejas estagnaram. Salvo pequenas exceções e alternativas, como o processo sinodal na bacia amazônica, territorializaram grupos criativos e iniciativas que geram comunidades de formação, encontro e celebração por meio da virtualidade, especialmente a partir da pandemia da Covid. A Igreja e as suas comunidades persistem no conhecido, no habitual, no mesmo. Longe, na maioria das vezes, e sem estabelecer caminhos comuns nem com a academia comprometida e crítica, nem com os movimentos sociais e as resistências populares. As igrejas estão fechadas e debochadas, cheias de nostalgia em velhos triunfalismos e protegidas do "exterior". Parece que voltamos às realidades do Concílio Vaticano I.

A Igreja do amanhã deve rever profundamente a sua história colonial, a sua estrutura patriarcal e a sua cumplicidade capitalista. Pequenas comunidades escapam disso, em muitos casos. Elas se posicionam diferentemente, transmitindo outras mensagens e lembrando de outros rostos. Sabemos bem disso. As eclesiologias clássicas, desde o Vaticano II, não se chocam apenas em sua constituição (hierarquia e povo), mas também em seu simbolismo e testemunho ético.

Portanto, a Igreja depois da Igreja persistirá no seu testemunho nazareno e na sua ética samaritana. Será entendida como uma ética do rosto, ou seja, uma ética da empatia e da escuta, da resposta e da liberdade. Mas nos atuais contextos de crise climática e extinção de espécies, esse rosto não pode continuar a ser apenas um rosto humano. Portanto, a ética cristã continuará seu caminho cósmico e ecológico. Será uma ética da terra, uma ética da hospitalidade de todo ser vivente. Uma ética onde o encontro e as relações marquem a pauta. Uma ética do dom e do perdão. Muito disso é conhecido, até estudado e ensinado. No entanto, parece que outras coisas, outros interesses, prevalecem no momento da transmissão e da catequese, se o quiserem.        

O ponto de partida é a fragilidade e o desamparo. Em outras palavras, a consciência e a humildade da criatura podem se tornar um motor para a ação. As comunidades retomam a práxis da impotência e da fragilidade, isso significa assumir um lugar concreto, um lugar de ação. Um lugar de humildade e simplicidade, longe de empresas bombásticas demais ou projetos com aspirações e pretensões muito grandes. As Igrejas se voltam a um lugar de necessidade, sabem ser mais uma dentro de uma rede plural e diversificada de agentes sociais, políticos, ecológicos e espirituais. Trata-se de retomar a imagem do fermento. Uma ética fermentada que simplesmente espera sazonar, temperar, tonificar e colorir espaços, práticas e reuniões, onde você possa participar. É uma penúltima práxis comunitária. Para voltar à fila, para esperar no banco.

Em suma, livrar-se da aspiração ao poder. E se houvesse um poder a que aspirar, seria o poder do serviço, o poder do amor, o poder do companheirismo. Nenhum outro. Longe do status e do conforto e longe dos dispositivos que reproduzem o pecado.

Uma ética pós-clerical é aquela que, a partir de um diálogo de saberes e encontros inter e transdisciplinares, pergunta sobre o futuro. É uma ética eminentemente reflexiva das questões do futuro. Ancorada no presente em crise e profundamente afirmativa de uma esperança, é entendida como uma ética da liberdade e da promessa. Ao dizer que constitui uma práxis e reflexão pós-clerical, procura explicitar que não é monopólio da hierarquia eclesial nem é legitimado pela voz daqueles que detêm a autoridade. Razão? Porque a atitude e opção ética que propomos é feminista, ecológica, híbrida, solidária e decolonial. Busca romper com a tríade colonial-capital-patriarcal e busca deshierarquizar. É uma ética profundamente batismal. Isso não significa, em hipótese alguma, aspirar as atitudes cismáticas, mas se estabelecer na transição, na mudança, na transformação cultural e epistêmica em que como projeto de humanidade e territórios estamos embarcados. As Igrejas depois da Igreja aprofundarão estes temas e projetarão uma ética do encontro muito mais aberta, muito mais produtiva.

Essa ética pode ser adotada pela nova eclesiologia para dar lugar a novos rios de esperança. Uma ética de afirmação e esperança que gera e está no centro das novas comunidades pascais. Mas isso não pode ser simplesmente uma afirmação – como tantas – muito menos algum tipo de código moral ou missão corporativa. A ética pulsa no coração de cada organização, instituição ou comunidade. Ela dá um horizonte de sentido, um porquê, para quê, mobiliza, tira da inércia, impulsiona. Ela dá forma às perguntas: como (?). Materializa os caminhos. Em suma, a ética é o ar que oxigena nossas vidas. Dá consistência e razão à práxis comunitária.

A Igreja múltipla e periférica; constituída por pequenos núcleos criativos e comprometidos, comemorativos e entregues as mesas compartilhadas e espaços comuns de reunião. Aquela Igreja de Igrejas assídua de paisagens e itinerante nos recessos da natureza, fácil de falar e aberta a diversos saberes culturais e geográficos; será uma comunidade simples e sóbria. A Igreja do amanhã exige uma autocompreensão evangélica de sua própria práxis e vida pública. Conhecer-se-á impotente, limitada, contextual e situada. Por isso é pós-clerical, porque o seu novo estatuto é o encontro, a voz, o rosto e a história concreta do outro, do ambiente e da comunidade. É uma ética territorial e territorializada.