Para um regime financeiro internacional mais justo

Un mundo sem dívida externa é possível
Para um regime financeiro internacional mais justo

MichaelT. SEIGEL


A campanha do Jubileu pelo cancelamento da dívida pediu algo mais, além do cancelamento da dívida. Houve outras exigências específicas. Primeira, que o cancela-mento fosse realizado mediante um procedimento impar-cial, transparente e participativo. E segunda, que se tomassem medidas para assegurar que no futuro não ocorram crises semelhantes, por outras dívidas.

Dado que a dívida surgiu de uma situação de dese-quilíbrio e desigualdade, o simples cancelamento da dívida não seria suficiente. As outras duas exigências não devem ser vistas como adendos da exigência do cancelamento da dívida. A longo prazo, podem ser até mais importantes do que o próprio cancelamento.

“Transparente” significa que os processos de decisão não deveriam ser ocultos. Isso quer dizer que todos aqueles cujas vidas são afetadas pela decisão deveriam poder conhecer o processo decisório. Inclusive, deveriam saber quem são as pessoas responsáveis, que temas foram considerados, que decisões foram realmente tomadas, e por quais razões. Como em outros temas, a transparência é exigida não apenas no processo de cancelamento da dívida, mas em todas as áreas de finanças e governo internacional. Pretender promover a democracia e o bom governo, sem assumir suas interações com governos, de forma aberta e transparente, é uma contradição para as instituições internacionais. Tais assuntos, como as estratégias de assistência aos países, por parte do Banco Mundial, deveriam ser públicos, assim como deveriam sê-lo todas as exigências políticas formuladas aos governos pelos credores e instituições internacionais.

“Imparcial” significa que a tomada de decisão não deveria estar em mãos de um setor particular. Dado que na crise da dívida os credores, normalmente, estão na posição mais forte, a imparcialidade quase sempre implicará garantir que os credores não controlem o processo.

“Participativo” significa que a neutralidade do processo deve-se realizar, não com uma tomada de decisão de forma distanciada e não comprometida, mas sim envolvendo todos aqueles que serão afetados pelas decisões resultantes do processo decisório. Naturalmente, o requisito mais importante, aqui, é assegurar a participação efetiva dos mais vulneráveis nesse processo.

Tomar medidas, para que crises semelhantes da dívida não voltem a acontecer no futuro, requer uma avaliação exaustiva dos antecedentes e causas fundamentais da dívida. A avaliação deve ser transparente em si, imparcial e participativa, no sentido que acaba de ser descrito. Tal avaliação teria de considerar o fato de que os países credores, em sua maioria, são antigos poderes coloniais; e os países endividados são antigas colônias, exportadores de matérias primas e manufaturas. Uma avaliação das causas fundamentais da crise da dívida teria de considerar, também, a situação desvantajosa das matérias primas e manufaturas no mercado internacional, e compensar o desequilíbrio. Deve-se encarar também os problemas de deslocamento da responsabilidade, sobretudo, quando a dívida deriva de processos tais como projetos de desenvolvimentos falidos, levados a cabo por iniciativa e direção dos credores. Entretanto, a falha é considerada como total responsabilidade do país recebedor.

A campanha do Jubileu, na exigência de medidas que devem ser tomadas para garantir que não ocorram crises de dívida semelhantes no futuro, cita alguns princípios éticos básicos que apontam para o tipo de sistema necessário. Descreverei alguns desses princípios.

a) O direito a uma alimentação adequada, vestuário, moradia, acesso a assistência médica e educação, são direitos essenciais. E têm prioridade sobre outros direitos, como o dos credores ao pagamento da dívida.

b) A primeira responsabilidade do governo é o bem-estar do povo, sobretudo no que diz respeito aos direitos essenciais mencionados. Não obstante, cada governo tem a responsabilidade de atender esses direitos básicos, antes de pagar seus credores. Uma certa parte do orçamento de cada país deveria ser considerada sacrossanta e fora do alcance dos credores. Essa parte deveria ser determinada de acordo com os direitos já definidos em documentos da ONU. E deveria incluir uma reserva prudente, para casos de catástrofes, etc.

c) Os governos também têm a responsabilidade de manter um certo grau de autonomia para o país, que permita, ao povo, um viver sem cair no servilismo. Assim como é necessário evitar toda forma de tirania dentro dos países, os governos têm a responsabilidade de evitar a política servil, ou a dependência econômica no que se refere a outros países ou instituições. Essa responsabili-dade de manter um certo nível de independência e auto-nomia também anula a responsabilidade de um governo para com seus credores. Isso significa que uma certa parte do orçamento de cada país deveria ser reservado como fundos para promover o desenvolvimento, de forma a se manter um nível suficiente de autoconfiança. Esse desenvolvimento é necessário para garantir que o bem-estar do povo se realize através de uma participação ativa, e não de uma aceitação passiva de distribuição. Essa parte do orçamento também deveria estar fora do alcance dos credores, já que faz parte de uma responsa-bilidade dos governos, que vem antes de sua responsabi-lidade para com os credores.

Tudo o que está acima descrito fundamenta-se na compreensão de que: a) A razão de ser dos governos é o bem-estar de seu povo. b) O direito de propriedade não é fundamental, pois há certos direitos humanos que o superam. A primeira responsabilidade dos governos é proteger esses direitos mais fundamentais. Somente quando possuem recursos suficientes para satisfazer esses requisitos, é que os governos têm direito de atender às exigências dos credores. Esse princípio básico é reconhecido, por exemplo, no capítulo 11 da Lei de Insolvência dos Estados Unidos, pela qual estados, cidades, condados, etc., podem solicitar subsídios por declaração de falência, sem expor os cidadãos à perda de seu bem-estar ou de suas propriedades. A proposta é que o princípio possa ser aplicado em todas as etapas do processo de pagamento da dívida, e não somente no momento da falência.

Naturalmente, um empréstimo feito a um governo não é o mesmo que um empréstimo feito a um agente econômico ordinário, como por exemplo um negócio corporativo. O governo, devido ao fato de que suas obri-gações incluem direitos humanos fundamentais, terá sempre obrigações mais fortes que sua responsabilidade para com os credores. Portanto, é necessário um regime internacional de empréstimos que seja compatível com essas obrigações fundamentais dos governos.

A lógica do empréstimo é que o recebedor invista o dinheiro em algum projeto e consiga rendimentos sufi-cientes, com os quais poderá devolver o empréstimo e os juros, e, ao mesmo tempo, reter um certo ganho. Quando não se consegue esse ganho, ocorrem as crises de dívi-da. Se um empréstimo não vai gerar ganhos, é muito provável que gere uma crise de dívida. Os governos não podem atuar como qualquer outro agente econômico, não somente porque têm outras obrigações maiores, mas também porque necessitam de financiamento para proje-tos e programas que, provavelmente, não gerarão ga-nhos. Os negócios ordinários não têm a responsabilidade primária de prestar serviços de saúde, educação, socorro em caso de catástrofes, infra-estrutura etc. Os governos têm essa responsabilidade primária, e se o financiamento para elas provém de empréstimos sujeitos à taxa de juros do mercado ordinário, as crises de dívida se tornam inevitáveis.

Os fundos para governos ou corporações governa-mentais, ou empréstimos pelos quais um governo prova-velmente será responsável, deveriam ser classificados de acordo com suas possibilidades de gerar rendimentos.

- Recursos para usos que não geram rendimentos, especialmente no caso dos países pobres, deveriam ser fornecidos em forma de doações. De fato, faz anos que a UNCTAD vem solicitando que a ODA seja dado em forma de doação e não de empréstimo. Ou seja: não se trata de uma proposta nova. No entanto, ainda se ouvem casos de doadores que oferecem empréstimos para objetivos tais como o combate à AIDS, um uso que não vai resul-tar em nenhum lucro. Tais empréstimos estão condena-dos a produzir crises de dívida. Esses financiamentos deveriam ser em forma de doações que, na maior parte dos casos, poderiam ser consideradas uma reparação pelo colonialismo ou pela desigualdade, ou seja: uma exigên-cia de justiça e não um ato de caridade.

- Empréstimos para projetos dos quais se espera a produção de rendimentos, poderiam ser concedidos com a taxa de juros do mercado, mas não deveriam ser garantidos pelo governo. Se um empréstimo não pode ser feito segundo a lógica do mercado, tampouco deve se sujeitar a um nível de juros próprio do mercado. Se alguns empréstimos garantidos pelos governos são indis-pensáveis, então, deve-se tomar medidas para reduzir a vulnerabilidade governamental, tais como a limitação do acúmulo de juros compostos e o reconhecimento das outras responsabilidades primárias dos governos.

Partes da atual crise da dívida resultam da quebra de projetos de desenvolvi-mento que, embora mal conduzidos, eram bem intencio-nados. Nesses casos, não é correto que todo o peso do pagamento da dívida recaia sobre os ombros do país recebedor. Em muitos casos, os projetos foram realizados por inicia-tiva e orientação de doadores e experts internacionais.

 

MichaelT. SEIGEL

Nagoya, Japão