Paradoxos da liberdade

Paradoxos da liberdade

Marc Plana


A defesa da liberdade tem um valor irrefutável enquanto arma contra a tirania. Diante do risco de nos convertermos em objetos nas mãos de interesses alheios, a defesa da liberdade é a garantia de poder seguir a ideia de bem que cada um sente como mais necessária para si (e não a que alguns poucos decidem que é a melhor para todos).

No entanto, deveríamos suspeitar de algo quando o conceito de liberdade é um termo tão aceito hoje por todo tipo de ideologias. Liberdade como participação e autonomia foi a demanda dos anos 60, mas também foi a palavra chave dos governos conservadores de Thatcher e Reagan. Liberdade é o grito do oprimido diante da lei do mais forte, mas também é a defesa capitalista para que o mais forte não ceda “o que é seu” diante das necessidades coletivas e a redistribuição de riqueza. Liberdade é hoje um conceito tão popular que cabe delimitar seus limites e empregos. Não podemos defender a liberdade da raposa no galinheiro. Há limites. Em linhas gerais trata-se de permitir uma liberdade entendida como meio para conseguir uma sociedade mais humana, frente a defesa cega da liberdade até o absoluto.

- Comecemos com o principal: a liberdade não serve para tudo. Isso teria riscos para nossa dignidade como humanos. Victoria Camps escreveu: “Não se associa o livre arbítrio, como um valor em si, aos animais, às crianças nem a nada que não tenha critério para autoconduzir-se. Associa-se o livre arbítrio aos humanos. Por que e para que? Para que realizem sua humanidade. A autonomia é, sem dúvida, condição de humanidade. O ser que vive só, sufocado, escravizado, não é um ser humano. Mas tampouco pode dizer-se que seja um ser humano, aquele que usa sua faculdade de livre arbítrio apenas para exercer a violência ou para dominar o outro. O quem desfruta da abundância à custa da miséria dos outros. Esses indivíduos são livres, mas o são unicamente para demonstrar que não são humanos”. Há um marco anterior à nossa ação livre que define o uso “humano” da liberdade. É um tema espinhoso, porque este marco não pode ser imposto por ninguém e sua concretização é sempre aleatória: Quem define “até aqui”? Que critérios são utilizados para justificá-lo? Como internalizamos os limites para que o bem seja compatível com o livre? Hoje, a alternativa para a imposição aleatória de limites não pode ser negar qualquer marco. A única alternativa viável à aleatoriedade dos limites que marcam nossa ação coletiva é o pacto comum desses limites, em um diálogo aberto, plural e democrático.

- A liberdade não pode ser desculpa para o relativismo. Porque podemos dizer tudo não significa que todo o dito valha o mesmo. Não confundamos liberdade de expressão com qualidade de expressão. As palavras de Romero não dirigem a humanidade para a mesma direção que os talk-shows televisivos nos quais as pessoas trocam insultos. De novo, vemos a necessidade de contar com um critério para valorizar a expressão (não para calá-la; apenas para reassentar o seu valor “humano”). Não deveríamos passar pelos apuros dos organizadores de uma exposição contra a censura quando deveriam justificar porque haviam apagado as pichações pró-nazistas que haviam sido pintados nas paredes.

Se podemos defender a liberdade como um direito absoluto a fazer o que quisermos, legitimamos o desaparecimento dos critérios que orientam nossa ação. O que nos resta, então? Os ultraliberais associam a liberdade ao instinto individual e confiam na capacidade individual de raciocinar para escolher sempre a melhor opção. Os menos ultraliberais acreditam que a decisão racional está longe de explicar como atuamos. Os seres humanos também decidem por impulsos, por influência do meio, pela cultura que nos forma... Defender a liberade como um direito absoluto a fazer o que queremos dá espaço às manipulações da publicidade, à opinião manipulada, à cultura instrumentalizada... Todo entorno social implica uma coação que regula nosso dia a dia e que orienta nossa ação (e é parte desse entorno tanto a educação como a publicidade). Pedir liberdade absoluta impede percebermos a quem essas coações servem e acaba sendo sempre “a história da raposa em liberdade dentro do galinheiro” como disse Tzvetan Todorov.

- Defender a liberdade não significa eliminar as estruturas sociais, e sim implicar que essas estruturas sejam libertadoras, no sentido de fazê-las sensíveis às necessidades humanas. Quando o objetivo da educação é a formação de produtores/consumnidores acríticos, a educação instrumentaliza o ser humano para fins outros que o seu bem-estar. O trabalho instrumentaliza se usar o ser humano para operar um maquinário do qual o bem-estar global é apenas um produto secundário à acumulação de dinheiro por uma minoria. Os meios de comunicação instrumentalizam quando pretendem manipular a opinião pública ao invés de lhe dar fundamentos. A alternativa às estruturas instrumentalizadoras são as estruturas libertadoras: educação e trabalho que saibam combinar o interesse geral com as necessidades individuais, meios que permitam por o conhecimento a serviço de nosso bem-estar...

- Falta-se da liberdade na rede, mas é questionável assumir que mais comunicação signifique sempre uma comunicação melhor. A informação relevante aumenta sua projeção, mas também crescem os vícios.

- O direito à liberdade protege o indivíduo da tirania em seu espaço privado. No entanto, um excesso de zelo pode transformar esse direito em alergia contra qualquer obstáculo. Usamos então a liberdade para justificar atitudes sociais duvidosas. Em primeiro lugar, a liberdade não pode ser utilizada para impor nossas necessidades ao espaço público. Não posso exigir, em nome da liberdade, que a lei reconheça meu direito de impor ao viznho música às 4 da manhã. O público é de todos, não meu. Em segundo lugar, não podemos usar a liberdade para lavar as mãos do que acontece no espaço público. “Eu não assisto televião – dizia um entrevistado referindo-se a programas populares – mas as pessoas podem fazer o que quiserem”. Sem nossa participação no espaço público (participando, dialogando, exigindo, valorizando...), não podemos garantir que o mundo em que vivemos não seja o resultado de uma geração de programas televisivos populares. O receio de que sejam vistos como obstáculos da liberdade dos outros não deveria legitimar nossa abstenção em participar no espaço público. Se a minha única opção diante do embrutecimento do caminho que me leva para casa é mudar de rota, logo não vou ter a liberdade para chegar em casa, limpo.

- A defesa de nossa liberdade legitima certa desconfiança na sociedade. Certo grau de ceticismo para com a imprensa, a política, a educação... não só é aconselhável como também se mostrou justificado. No entanto, o individualismo atual propõe um ceticismo genérico para com a sociedade que se contrapõe à coesão social. Tudo se resolve com a autogestão e controle individual da minha vida. Nossos filhos fazem carreiras super-especializadas; a solução para a crise econômica é ser empreendedor; os direitos são só direitos para quem pode pagá-los... As microcápsulas individuais de vida crescem por toda parte. A individualização da sociedade se dá até mesmo entre os críticos. Um chamado antisistema afirmava havê-lo deixado todo para comprovar como era o mundo em primeira pessoa. No entanto, até que alguém possa operar-se a si mesmo, a alternativa ao ceticismo social é refundar a confiança sobre os pilares da transparência e responsabilidade social. Ao individualismo e ceticismo extremos, também conhecidos como descoesão social.

Meios e ficções repetem todo dia que o êxito só depende da gestão correta da sua vida ou, em outras palavras, de usar corretamente sua liberdade. O mito da superação, o esforço e os slogans sobre a inexitência de limites se reproduzem por toda parte. Não pretendo negar (duas vezes) o valor da autogestão, mas cabe aqui lembrar que toda ideologia manipuladora se fundou sempre a partir de um uso intencionado de valores positivos e populares. Diante da solidão e da dor, a autogestão (a resiliêcia, seria preferível dizer) é importante, mas não podemos - por esse mito - a serviço da destruição do tecido social. Diante da minha dor, desejo energia, mas também necessito contar com o outro.

A liberdade não pode ser uma palavra usada acriticamente para justificar qualquer ação. Nossa dignidade depende disso. Pico della Mirándola disse que a liberdade pode nos transformar em deuses ou animais. Sejamos conscientes quando a exigência de liberdade serve para justificar a descoesão social, para invisibilizar a necessidade do outro, ou para instrumentalizar nossas ações a favor de interesses alheios ao bem comum.

A liberdade não pode destruir o marco que nos une, nem deslegitimar nossa capacidade para o pacto coletivo. Exijamos liberdade, sim, mas exijamos liberdade para nos tornarmos mais humanos.

 

Marc Plana

Girona, Catalunha, Espanha