Pátria Grande e democracia

Pátria Grande e democracia

Guido Zuleta Ibargüen


Nestas linhas se apresenta a visão bolivariana da sociedade e da democracia, e alguns enfoques sobre a possibilidade de passar de uma democracia elitista para uma democracia de participação humana e ecologicamente responsável. Concebem-se desde uma Venezuela em transformação, que, com acertos e erros, transita historicamente por um êxodo sumamente difícil, mas, ao mesmo tempo, esperançoso.

1. Bolívar e a democracia: o discurso de Angostura.

No devir histórico da emancipação, provavelmente existam duas influências muito relevantes na visão da sociedade a construir. A mais conhecida, a de Simón Bolívar, que, assumindo a perspectiva dos ideais republicanos provenientes da Europa revolucionária, intenta criar um modelo possível e viável para os povos nascentes. Esta visão da sociedade possível, esboça-a no chamado Discurso de Angostura (15/2/1819), dirigido ao Congresso da Grande Colômbia. O discurso oferece um marco de referência do governo republicano, democrático, com o Congresso como instância representantiva, e no qual, além dos três grandes poderes clássicos – Executivo, Legislativo e Judiciário – propõe a constituição de um Poder Moral como impulso a uma formação e ação cidadãs. Ao finalizar o discurso, o militar cede o lugar ao estadista e assume que terminou sua tarefa para que o Congresso inicie a sua.

Muito dessa temática vem à discussão massiva durante 1999, que originou a Constituição da República Bolivariana da Venezuela, na qual, junto dos três poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, agrega-se um Poder Cidadão que inclui a Promotoria Geral, a Controladoria Geral e a Defensoria Pública. Este Poder Cidadão representa o Poder Moral Republicano como propósito de apoio a uma democracia com um conteúdo ético transcendente.

2. Democracia e tratados de livre comércio.

Depois da queda do muro de Berlim, no final dos anos 1990, com o fim da geopolítica predominantemente baseada em um mundo bipolar, a vigência do modelo neoliberal, baseado na livre concorrência, se fez especialmente potente. A enorme brecha histórica entre elites nacionais e população empobrecida por uma parte e por outra a desigual potência econômica comercial nas relações com o exterior geraram uma situação na qual a democracia real resultava vigente plenamente para os grandes grupos de poder, entre eles as transnacionais, mas, praticamente inexistente para as grandes maiorias.

O predomínio do mercado no tratamento da orientação desse estilo de democracia permite tratados de livre comércio de mercadorias, entre países economicamente muito desiguais, mas impede na prática a passagem de pessoas que buscam atravessar as fronteiras para obter trabalho. A democracia assim enfocada inibe na sua capacidade de garantia e é restringida para uma elite econômica.

3. Democracia, direitos humanos e desenvolvimento

A desigualdade gerada e a debilidade dos Estados diante o impulso dos grandes grupos de poder geraram uma enorme brecha de atenção aos direitos sociais, políticos e culturais, direitos sumamente urgentes para que os direitos políticos possam ser exercidos pela sociedade. Essa democracia política com exclusão social não resultou viável. Na Venezuela derivou num dos acontecimentos de maior impacto histórico quando, em 1989, se firmavam e se aplicavam as primeiras medidas da Carta de Intenção com o Fundo Monetário Internacional. A população empobrecida saiu às ruas para buscar seus direitos e foi reprimida pela força armada. Questão que depois resultou numa campanha de alerta à consciência dos militares formados no pensamento bolivariano: “maldito o soldado que dispare contra seu povo”.

A democracia política requer assumir um critério de defesa dos direitos humanos sociais e culturais, sem os quais sua vigência resulta esporádica. A democracia necessária nestes momentos deve ter como princípio a defesa desses direitos para avançar não só no crescimento econômico, mas, também, na qualidade de vida da população.

4. Democracia, globalização e recursos naturais

O sistema neoliberal gerou uma super-exploração dos recursos naturais do planeta, e impactos sumamente graves que atentam contra sua sobrevivência. A chuva ácida, o aquecimento global, a destruição da camada de ozônio são, em grande parte, ocasionadas pelo estilo de crescimento adotado em nome da liberdade de decisão sem restrições. Cuja máxima responsabilidade está nos países industrializados.

Desde a Cúpula da Terra, 1992, o conceito de Desenvolvimento Sustentável tenta assumir um estilo de desenvolvimento que equilibre a produção conservacionista com a qualidade de vida da população, o cuidado dos recursos naturais. Lamentavelmente, os acordos na ONU, como o protocolo de Kyoto, que servem para regular estes aspectos não são bem vistos nem cumpridos pelos governos dos países que mais contaminam o planeta, como os EUA. Países de grande desenvolvimento humano, como Suécia, Noruega, Dinamarca, respeitam e promovem estes acordos. A democracia a ser construída na América Latina deve ter em seu seio uma grande responsabilidade sobre os recursos da Criação.

5. Democracia, participação e comunicação

Desde suas origens, a democracia se concebe como governo do povo. No princípio, não se incluía entre os votantes os escravos nem as mulheres. A evolução do conceito democrático requer, hoje, levar em conta a ampliação na participação na tomada de decisões que afetam a comunidade. Com a tecnologia atual se podem conseguir ampliar vias de comunicação e melhorar a tomada de decisões. A palavra deve ter essa carga espiritual bíblica com conteúdo ético para que se permita a vida de todos. E a palavra restringida mediante a propriedade dos meios de difusão impede na prática o direito de estar bem informado, necessário para as tomadas de decisões comuns. Uma democracia com responsabilidade participativa, deve conseguir implantar eficazmente a comunicação como serviço público. E requer promover espaços de decisão no nível comunitário o mais amplo possível, para implantar modelos de planejamento democrático, eticamente participativos, que permitam, por sua vez, um controle social responsável.

6. Democracia e integração econômica

Como critério de integração econômica, tem-se promovido os tratados de Livre Comércio das Américas, a ALCA, como uma forma de preservar uma área geográfica como um ringue para que compitam nações com graus de industrialização muito diferentes. E nesta livre concorrência se põe a competir a primeira potência econômica do mundo com países que não chegam nem a 1% de seu produto interno bruto, como o Haiti. Neste contexto resulta uma integração competitiva sumamente desigual e com critérios que não têm nada a ver com desenvolvimento sustentável ou humano. Uma democracia com critério de responsabilidade humana e social requer apresentar-se com outros esquemas de integração.

A via da integração inicial Latino-americana permite não só equilibrar a negociação frente a países e empresas transnacionais, como muda o enfoque para um critério não de competência, mas de solidariedade, para resolver os grandes problemas comuns, e com responsabilidade frente aos enormes recursos estratégicos da criação, situados nestes lados do hemisfério, assim como respeito às culturas ancestrais. Como alternativa a uma globalização excludente, se projeta uma via democrática de integração com critério de mundialização solidária.

7. Democracia e integração social

Os tratados de integração baseados no livre mercado se apresentam privilegiando o comércio de mercadorias. Reconhecendo que esta dimensão deve ser tratada em termos realistas em cada país, a dimensão ética democrática privilegia as pessoas e sua qualidade de vida, sobre a mercadoria. Daí que não resulta ética uma integração com esse privilégio comercial. Trata-se de priorizar democraticamente a integração social como orientação da tomada de decisões comuns entre os países. De nada serve abrir mercados em zonas excluídas socialmente que, mais do que capacidade de demanda, o que têm são necessidades sociais insatisfeitas. A democracia a construir requer eticamente projetar uma dimensão integradora. Daí a importância de delinear sistemas de caráter socialista democrático que preservem a propriedade privada e a liberdade com critérios de justiça, responsabilidade social integradora e responsabilidade com os bens da criação.

8. Democracia e segurança

A Constituição da Venezuela, de 1999, inclui (art. 326) como conceito de Segurança da Nação a co-responsabilidade entre o Estado e a sociedade civil para dar cumprimento aos princípios de independência, democracia, igualdade, paz, liberdade, justiça, solidariedade, promoção e conservação ambiental e afirmação dos direitos humanos... sobre as bases de um desenvolvimento sustentável e produtivo de plena cobertura para a comunidade nacional. Conceito totalmente diferente para uma orientação baseada em hegemonias de poder. Para assumir um critério co-responsável de segurança que permite combater males como a pobreza, a exclusão ou a insegurança ambiental.

A democracia responsável requer assumir um critério de segurança que resulte coerente com a defesa das pessoas e de seus meios de vida.

9. Por uma democracia integradora e solidária

Para a América Latina, a democracia que se vislumbra, como um aporte próprio de séculos de dominação que se reverte construtivamente, depois de séculos de sofrimento, num aporte de ressurreição construtivo, tolerante, responsável, pluricultural, solidária com os fracos, integradora e responsável com os recursos da criação.

Capaz, assim, de oferecer um aporte a toda a humanidade, para demonstrar que realmente é o Continente da Esperança, por uma vida digna de vida em abundância partilhada.

 

Guido Zuleta Ibargüen

Fundalatin. Caracas. Venezuela