Pedro Casaldáliga nos ensina que esperança é um ato de rebeldia

 

Carolina Motoki

Este texto foi originalmente publicado em www.reporterbrasil.org.br

Enterrem-me no rio,

Perto de uma garça branca.

O resto já será meu.

E aquela correnteza franca

 

Que eu, passando, pedia,

Será pátria recuperada.

O êxito do fracasso.

A graça da chegada.

 

A sombra-em-cruz da vida

Sob este sol de verdade

Tem a exata medida

 

Da paz de um homem morto…

E o tempo é eternidade

E toda a rota é porto!

Sempre desconfiei dos grandes homens. Mais ainda dos grandes homens vindos da Igreja Católica. Como poderiam ser grandes homens, se tinham se associado a uma instituição que tem tamanha responsabilidade sobre como o mundo moderno se constituiu? Sem a qual não teria sido possível construir a ideia de que havia gente sem alma, e que, por isso, poderia ser escravizada? Não seria uma grande contradição?

De contradições somos todos feitos, comecei a minimizar, quando conheci, em 2006, a Igreja que se fazia pelo caminho inverso, o da libertação. Ao ingressar naquele ano na equipe da Repórter Brasil, li pela primeira vez a carta pastoral “Uma Igreja da Amazônia em conflito com o latifúndio e a marginalização social”, escrita em 1971 por Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix do Araguaia, no nordeste do Mato Grosso. 

[...] Nos 150 mil quilômetros quadrados de atuação de Pedro, o latifúndio foi se instalando de forma violenta, expulsando posseiros e indígenas, escravizando trabalhadores migrantes – os peões –, com apoio da polícia e financiamento público. Ali se estabeleceu sobre território do povo Xavante talvez o maior latifúndio do mundo, a fazenda Suiá Missu, 800 mil hectares de propriedade de um único dono. Indígenas foram transferidos em aviões da Força Aérea Brasileira para lugares distantes. Posseiros e trabalhadores eram assassinados sem direito a enterro.

Foi essa carta pastoral de 1971 que denunciou ao mundo a contemporaneidade da escravidão no Brasil. Contrariando a desumanização colonial e desafiando o regime militar, aquele homem denunciava as atrocidades contra pessoas – em sua maioria negras e indígenas – vistas como inferiores, como sub-gente, como não-humanas, desalmadas.

[...] Pedro identificou no latifúndio o inimigo do povo, as bases da desgraça hereditária da sociedade brasileira. A fundação daquela região como Brasil – e podemos falar, de todo Brasil – se deu sob a violência do latifúndio, hoje convertido em agronegócio. Ao contrário dos algozes e das doutrinas que justificavam a escravidão, Pedro só denunciava as atrocidades porque reconhecia, nos homens desumanizados e tratados pior que bicho, a sua própria humanidade. Ele não via nos homens arruinados a sua ruína. 

Em cada rosto, em cada corpo vivo às vezes só apelido, ou nos corpos mortos às vezes sem nome, Pedro reconhecia os sujeitos que mereciam viver e viver em abundância. E que eram capazes de transcender a situação de exploração. A ruína da humanidade estava nos opressores.

Foi com esse pensamento que Pedro, junto a outros bispos e religiosos, fundou o Conselho Indigenista Missionário, o CIMI, em 1972, e a Comissão Pastoral da Terra, a CPT, em 1975. Quando me mudei para o norte do Tocantins, em 2007, fui acolhida no seio dessa mesma CPT Araguaia-Tocantins. Era uma outra Igreja que se apresentava para mim, feita de gente que se colocava a serviço dos que estavam resistindo às cercas, aos tratores e às balas do latifúndio. Em seu centro estava a sede de justiça, e não a perpetuação da religião. [...]

  

Aprender com o outro

Ser o que se é
Falar o que se crê
Crer no que se prega
Viver o que se proclama
Até as últimas consequências

Eunice e Luiz de Paula eram muito jovens quando chegaram na região, em 1970, a convite de Pedro para trabalhar no ginásio recém-criado. As pessoas que chegavam se dividiam entre a escola, o atendimento à saúde e a acolhida dos posseiros, indígenas e trabalhadores. Em 1968, havia em São Félix apenas uma pequena escola primária, pertencente a Barra do Garças, 800 quilômetros distante. A prelazia assumiu papel de suplência do Estado, ao criar instrumentos que pudessem garantir educação e saúde às pessoas. 

Em 1973, o casal se mudou para a aldeia do povo Tapirapé, hoje autodenominado Ãpyãwa. Levaram consigo o filho de dois meses, que ali cresceu. Sua função seria delicada: ajudar na construção da escola de um povo que tinha sido reduzido a apenas 120 pessoas. 

“Duas irmãzinhas de Jesus moravam com os ãpyãwa desde 1952. Imagina essas duas mulheres chegando na aldeia em 1952, quando essa região era muito isolada, a comunicação era feita muito de vez em quando por um barco que passava. Elas foram as primeiras alunas não-indígenas dos ãpyãwa. Essa convivência com os indígenas, esse exercício de se inculturar, de se aproximar cada vez mais do modo de vida deles, foi um exemplo para Pedro, para toda a equipe e também para o CIMI. As irmãzinhas nunca pregaram o evangelho para os ãpyãwa, elas foram dar testemunho do evangelho junto a esse povo”, relata Luiz.

Esse modo de estar nas comunidades partia dessa concepção de horizontalidade, de não hierarquia, de não superioridade. O aprendizado se dava não apenas entre os agentes, mas também com posseiros, indígenas e peões. Ali, Igreja e educação popular inspiravam-se mutuamente. É essa concepção que fez com que Pedro, a CPT e o CIMI se tornassem referência de atuação para outros movimentos e militantes, muitos deles originados em seus seios, mas sem qualquer conotação religiosa.

A experiência com os ãpiãwa foi um marco para a construção da atuação missionária da Igreja junto aos povos indígenas a partir do CIMI, subvertendo o que até então havia sido construído, com a Igreja responsável pela dizimação dos povos e a extinção de suas línguas – uma ameaça que volta com força hoje, a partir da entrada das igrejas evangélicas nos territórios. 

Somente em 1988, a escola dos ãpyãwa foi reconhecida pelo Estado. Durante 15 anos, ela sobreviveu apenas com o apoio da prelazia. A aldeia era o local aonde Pedro ia para refletir e se retirar. Foi desses indígenas que Pedro ganhou de presente seu anel de tucum, palmeira espinhosa, que se tornou símbolo de compromisso com as causas do povo. 

Para Luiz e Eunice, sua relação carinhosa com os indígenas ãpyãwa é traduzida pelo carinho que mantêm em relação a ele ainda hoje: ele é chamado de xaneramõja, “nosso avô”. Talvez sem esse trabalho, suas terras também teriam virado pasto, e hoje não houvesse mais ninguém para contar a história. 

Festa da vitória

Bem perto dali está o povoado de Santa Terezinha, hoje município, nas margens do Araguaia, de frente para a Ilha do Bananal. Os primeiros moradores chegaram por volta de 1910 e, no final da década de 1960, ali viviam cerca de cem famílias, que haviam construído escola, igreja, ambulatório e uma cooperativa de produção. Em 1966, todas aquelas terras e além – quase 200 mil hectares – foram destinados à Codeara, a Companhia de Desenvolvimento do Araguaia. Tudo ali, inclusive a área urbana, virou propriedade da empresa, que se julgava dona de tudo e de todos. A violência se estabeleceu: ameaças, invasões, demolição de casas, prisões, mortes. 

A perseguição aumentou quando a comunidade, com apoio do padre Francisco Jentel, denunciou a situação ao presidente Costa e Silva, em 1967. A empresa destruía construções e erguia novas, sem consultar as famílias.

Malditas sejam todas as cercas!
Malditas todas as propriedades privadas que
nos privam de viver e de amar!
Malditas sejam todas as leis,
amanhadas por umas poucas mãos,
para ampararem cercas e bois
e fazerem da terra escrava
e escravos os homens!

Até que a empresa decidiu derrubar o ambulatório, posto médico da comunidade. Era 3 de março de 1972, a população se revoltou. No confronto, sete jagunços da fazenda foram assassinados pelos posseiros. A partir daí, a empresa teve de recuar. Apesar da perseguição que se deu após o conflito, se estabelecia a vitória dos lavradores diante da companhia. 

O 3 de março até hoje é comemorado em Santa Teresinha como a “Festa da Vitória”. Uma memória de resistência que segue viva e forte. Quando o município foi emancipado, sua fundação se deu no dia 4 de março, para tentar apagar essa memória e criar uma história oficial. Na descrição sobre o município no site do IBGE, consta que os posseiros chegaram depois da empresa. A Igreja teve papel fundamental para que a verdadeira história fosse contada.

Os casos de confronto entre posseiros e policiais, pistoleiros ou jagunços das empresas agropecuárias são inúmeros. Os assassinatos promovidos pelo latifúndio são incontáveis, assim como os peões desaparecidos. Mas é possível que se leia nessa reação da população atos de extrema violência, que contrariam um dos mandamentos de Deus. 

A injustiça tem um nome nesta terra: Latifúndio. E o único nome certo do Desenvolvimento aqui é a Reforma Agrária.

Historicamente os movimentos de trabalhadores têm sido intensamente criminalizados. Sem-terras são tratados como baderneiros, uma ameaça que deve ser destruída. Por que derrotar a propriedade privada soa como radical, e não parece radical a forma de tratamento dada a humanos e outros seres por essa mesma propriedade privada?

Mas Pedro sabia que os inimigos não eram os “paus-mandados” dos fazendeiros. O inimigo era o próprio latifúndio.

“No fim de 1983, os pistoleiros das fazendas Frenova e Piraguassu expulsaram posseiros e assassinaram o “Zé das Cachorras” em Canabrava do Norte e um trabalhador que acabara de chegar em Porto Alegre do Norte à procura de serviço. Os pistoleiros cortaram as orelhas deles como prova do feito. No cemitério, Pedro pediu ao presidente do Sindicato para por um pouco da terra da cova de um pistoleiro que foi linchado num copo e disse ao povo que o pistoleiro não era o inimigo, pois ele foi usado e descartado; o inimigo era o latifúndio. Depois ele deu o copo à viúva do trabalhador morto e pediu-lhe que misturasse com terra da cova do seu marido”, lembra Jeane Bellini, que integrou a equipe pastoral entre 1983 e 2005. 

 A cruz e a cadeia

Era outubro de 1976. Em um confronto, posseiros haviam matado o cabo Félix, conhecido na região por cometer diversas atrocidades. Os policiais atribuíram o assassinato a um dos lavradores, Jovino, e a seus filhos. Eles se esconderam na mata. A esposa de Jovino, Margarida, e sua nora, Santana, foram levadas à prisão em Ribeirão Cascalheira, onde foram barbaramente torturadas. “Impotentes e sob torturas – um dia sem comer e beber, de joelhos, braços abertos, agulhas na garganta, abaixo das unhas – uma repressão desumana”, descreveu Pedro. Santana foi reiteradamente violada pelos policiais. 

No dia 12 de outubro, Pedro e o padre João Bosco Penido Burnier participaram de uma celebração. Em seguida, se dirigiram até a delegacia para negociar a soltura das duas mulheres. Os gritos de Santana e Margarida se ouviam do lado de fora. A negociação não teve sucesso e João Bosco foi assassinado por um dos policiais. 

No dia 18 de outubro, a comunidade se reuniu para a missa de sétimo dia. Uma cruz seria colocada em frente à cadeia, na qual se lia: “Aqui, no dia 11 de outubro de 1976, foi assassinado o padre João Bosco Burnier, pela polícia, defendendo a liberdade do povo.” 

“Enquanto se plantava a cruz na frente da delegacia, uma mulher levantou a voz e disse: ‘o que representa a cadeia pra nós? O que representa essa cruz?’. E o pessoal começou a falar, foi coisa impressionante: ‘Nessa cadeia, só gente pobre que foi presa. Eu, por exemplo – era uma senhora de uma certa idade –, eu que inaugurei essa cadeia’; ‘A cruz representa a libertação. Entre a cadeia e a cruz, nós queremos a cruz, e vamos derrubar essa cadeia’”, conta a irmã Beatrice Kruch, a Bia, que estava presente.  Em revolta, a população colocou a cadeia no chão. 

Esse ato de desobediência impactou o regime militar, que enviou a Polícia Federal para apurar o ocorrido. Naquela época, toda revolta do povo era monitorada, pois pairava no ar o medo de que a guerrilha do Araguaia ressurgisse. Toda ação era considerada uma ameaça. 

O assassinato de padre João Bosco gerou grande comoção, e alguns dizem que era Pedro que deveria ter morrido em seu lugar. Pedro não foi assassinado, apesar de esse ter sido o desejo e o plano de fazendeiros durante toda a sua vida. Tantos outros, no entanto, não tiveram a mesma sorte. São incontáveis os assassinados pelo latifúndio, uma realidade que se estende até os dias de hoje. 

Em memória dessas pessoas, um ano depois da morte de João Bosco, foi construído o Santuário dos Mártires da Caminhada. Durante a obra, “Pedro, como bispo servidor, se fez servente de pedreiro carregando ao longo dos dias tijolos, empurrando carrinho de massa”, nos conta a irmã Madeleine Hauser, a Mada. 

Ali, de cinco em cinco anos, pessoas de todo canto se reúnem em romaria, se tornam pontos de luzes na peregrinação noturna, em uma verdadeira partilha da dor e da força. Percorrem o lugar marcado por essas histórias, de luto e de luta. Em 2011, me juntei a elas. Os cantos choram os inumeráveis mortos pelo latifúndio e gritam a potência da libertação. Pedro sempre esteve presente, bem vivo.

Profeta da esperança

Ao final do caminho me dirá
E tu, viveste? Amaste?
E eu, sem dizer nada,
Abrirei o coração cheio de nomes

Nesse tempo e nesse lugar esquecido, em sua opção radical pelos empobrecidos, Pedro se fez o profeta da esperança da terra sem males. Pedro transformou o que se chama de fim do mundo, e as pessoas que viviam nele, no começo do mundo. Ele e sua equipe pastoral fizeram daquelas margens de rio o centro da vida que se constrói cotidianamente, em cada palavra, em cada gesto, pequeno ou grandioso.

Conheci esse Pedro em 2011. Um pouco antes da romaria dos mártires daquele ano, a CPT promoveu um seminário sobre trabalho escravo contemporâneo em São Félix do Araguaia, no centro de formação da prelazia, na beira do rio. O lugar havia sido escolhido justamente para fazer memória de sua luta. Aos 84 anos, ele esteve presente e recebeu homenagem. Na fotografia que tenho deste momento, estou sentada na plateia do seminário, ele perto de mim. O que gosto dela é que olhamos na mesma direção.

No dia seguinte, um pequeno grupo foi até sua casa. Nos fundos, em uma capelinha de paredes abertas, participamos de uma celebração, que acontecia todas as manhãs. Pedro apertou as mãos de meu amigo Daniel Santini, editor da Repórter Brasil na época, e disse: “seja um jornalista comprometido com o povo”.

Pedro partiu, e os seus inimigos possivelmente comemoraram, pensando que ficamos menores. O que eles não sabem é que Pedro nos deixou maiores. Pedro foi multiplicado: ele segue nessa gente que tem nos dedos o anel de tucum, que continua acreditando na construção de um novo tempo aqui e agora.

Nas palavras de Bia, “Pedro, homem de fé e de profunda espiritualidade, soube manter a calma e ajudar a discernir as melhores atitudes a serem tomadas nas horas grandes de aflição e perseguição. O exemplo de vida de Pedro, irmão, companheiro, profeta, poeta, nos anima na teimosia, na resistência, na coerência, na entrega pelas causas dos pobres, os preferidos de Deus. Ele nos fortalece nesse tempo de crise, crise política, de pandemia, a nunca perder a esperança”.

A partida de Pedro não esgota as possibilidades de construção de outro mundo, ainda que sob as condições mais adversas. Ao contrário, seu testemunho aponta que é possível criar utopias sentidas e, sobretudo, vividas, desde que com outras pessoas e com compromisso. Quantos de nós estamos dispostos a isso? Por que caminhar ao lado do povo parece algo que só é possível aos santos? Por que nos parece impossível deixar as necessidades criadas pelo capitalismo e nos ater àquilo que é essencial, o amor às pessoas? Como derrubar as cercas dentro de nós?

A vida de Pedro e de outros agentes de CPT, com quem afortunadamente convivo, me fazem questionar as minhas próprias escolhas, ainda mais depois de voltar a viver em São Paulo, no final de 2016, essa cidade que me coloca o tempo todo em contato com as minhas contradições. Uma certeza levo comigo: é preciso sempre pisar o mesmo chão que essa gente, sentir que pés, coração e cabeça estão no mesmo lugar. 

Pedro e sua memória viva ameaçam os poderosos não apenas porque denunciam e escancaram as injustiças; Pedro e sua memória anunciam que é possível uma nova realidade, a partir de outras bases. Isso derruba os mitos de que a exploração é condição natural para o funcionamento da vida e de que trabalhadores só existem porque existem patrões e donos da terra. Essa é a dimensão profética de Pedro, e das lutas camponesas e indígenas, que ele tanto apoiava. A dimensão de denúncia de injustiças e de anúncio de um mundo novo. A dimensão da esperança.

E para estes nossos dias sem cor, confinados pelos privilégios ou expostos ao vírus da desigualdade, relembro o que Pedro dizia: “Nos piores momentos, mais forte deve ser a esperança”. Uma espera que não é ingênua nem passiva, pois nos move para que possamos, não só sonhar, mas construir dias melhores. Uma esperança que não podemos deixar que nos roubem. Pedro nos ensina que ter esperança é um ato de rebeldia.

 O Testemunho de Pedro Casaldáliga nos desafia:

  1. Leia as mensagens e poemas que falam de Pedro – tanto os que estão nesta sessão, como de outros de seus escritos.
  2. Ao ler, destaque as passagens que mais o tocam...
  3. Com elas, elabore um testamento, que inspire sua prática.

 [Os depoimentos citados no texto são de Ana de Souza Pinto (Aninha), Beatrice Kruch (Bia), Claudia Araújo, Eunice Dias de Paula, Jeane Bellini, Luiz Gouvêa de Paula, Madeleine Hauser (Mada) e Paulo César Moreira. Contribuíram ainda: Daniel Santini, Evandro Rodrigues dos Anjos, Elizabete Fátima Flores, Igor Rolemberg e Xavier Plassat.]