Pedro vive: suas causas permanecem

 

Paulo Gabriel

Os poetas são os sonhadores dos povos. Os profetas, por terem sensibilidade aguçada para o tempo presente, conseguem intuir o futuro. São os místicos, pessoas que vivem ancorados no essencial. Os mártires são testemunhas fi éis das grandes causas que dão sentido à vida. Os verdadeiros pastores são líderes que arrastam pela sua coerência.
Pedro foi tudo isso: poeta, profeta, místico com os pés no chão, verdadeiro pastor de seu povo, pelo qual arriscou muitas vezes a própria vida, e mártir. Num longo e sofrido martírio, que ele assumiu, com a serenidade que dá ter vivido a vida desde a fé no Deus da Vida e, por isso, ter-nos deixado, como testamento fi nal: “acima de tudo, a esperança”.
Esta é a primeira Agenda Latino-americana Mundial que nasce após a Páscoa de Pedro. Ao recordá-lo, emocionadamente aqui, esta introdução foge, em parte, ao que sempre foram as introduções fraternas de Pedro: um resumo do que é a agenda do ano. Mas era necessário recordá-lo e torná-lo presente neste espaço que sempre foi dele. Com seu estilo belíssimo, apaixonado, radical, profético, desafi ador e lúcido, exigia, de todos nós, posições concretas nos desafi os do dia a dia. Pensar globalmente, atuar localmente. Cabeça nas estrelas e pés no chão.
Apaixonado pela Pátria Grande, nossa América, a primeira Agenda idealizada por Pedro em 1992, conclamava a sermos isso, todos irmãos na Grande Pátria livre, pela qual tantos homens e mulheres dos nossos povos entregaram e continuam entregando suas vidas. Eram os 500 anos do mal chamado “descobrimento”. E a Agenda se propunha ser mais um instrumento para fomentar em nós a consciência de que fazemos parte desta grande Abya Yala, Pachamana Americana e, para isso, era preciso ter sonhos e projetos comuns. Ao longo dos últimos 30 anos, a Agenda, ano a ano, colocou no debate os temas mais candentes do momento, alimentando nossa fome e saciando nossa sede de infinito.
Se é verdade que Pedro foi o idealizador da Agenda, alma e coração da mesma, também é verdade que José Maria Vigil foi o articulador, o organizador, cérebro e divulgador da mesma no dia a dia. E foi o pintor da libertação, Maximino Cerezo Barredo, quem deu rosto, arte e forma à mesma. Os três dignos fi lhos espirituais de Santo Antônio Maria Claret, grande missionário e grande visionário.
O tema deste ano abrange vários grandes temas. Todos interligados no sonho de irmos dando forma a outro mundo possível. Antes de mais nada, o futuro há de ser sonhado para poder ser construído. Se a noite é longa e o tempo adverso, urge alimentar a utopia num projeto coletivo. “Sonho que se sonha só, pode ser pura ilusão, sonho que se sonha juntos, é sinal de solução”, dizia Hélder Câmara.
O papel dos Movimentos Sociais e Populares hoje é o eixo central da Agenda deste ano de 2022. E, em conexão com esse tema, estão todos os outros: a educação popular; a volta ao trabalho de base, numa nova realidade pós-pandemia; como manter viva a esperança em tempos sombrios; uma outra economia solidaria, como oposição ao mercado, que exclui e mata. E o tema transversal, que deve orientar sempre nossa ação: o cuidado com a casa comum, a ecologia integral, a defesa da vida.
São os temas e os desafi os do momento, se soubermos ler os sinais dos tempos. De alguma forma, são temas que o papado de Francisco vem colocando na pauta mundial: seu apoio aos Movimentos Sociais (Teto, Trabalho e Terra); a defesa de uma ecologia integral, que cuida da terra e dos fi lhos da terra, uma outra educação e uma outra economia, a preocupação com as migrações e os refugiados, e uma outra relação na política internacional.
Deus me deu a graça de viver 20 anos, lado a lado, com Pedro, em São Félix do Araguaia. Fruto dessa vivência, um dia escrevi o poema

AMIGO Meus olhos viram tantas vezes as mesmas coisas que os seus:
             água, mata, estrelas,
             a beleza repartindo-se entre o dia e a noite,
             a morte, a pobreza.
             Vibrou meu coração juntamente com o seu
             redescobrindo o mundo pelo avesso.
             Sentimos juntos a raiva queimando nosso peito
             impotentes frente à tortura, o fuzil, a prepotência.
             Seguiram meus pés seu caminhar
             e prosseguem agora abrindo o caminho incerto.
             Juntos fi zemos poemas nunca escritos
             e já nem sabemos quais são os seus versos e os meus versos.
             Aprendemos a amar o mesmo povo
             e ele abençoou-nos com o mesmo beijo.
             Tivemos sonhos comuns e comuns são nossos mortos!
No dia 12 de agosto de 2020, eu pude participar da despedida de Pedro junto ao povo de São Félix
do Araguaia. Fruto dessa vivência foi o poema:

AMANHECER      Como todas as manhãs, há milhões de anos,
NO ARAGUATA   o sol abriu seus olhos sobre a Ilha do Bananal
                             e beijou o Araguaia na solidão da aurora.
                             Como todas as manhãs,
                             uma fresta de luz atravessou o Centro Comunitário Tia Irene
                             e, leve como a fl or de pequi no chão, pisada, iluminou o anfi teatro.
                             Eu estava ali pelo amor levado
                             - talvez nasci para eternizar nos meus olhos esse instante -
                             e vi,
                             confesso que eu vi,
                             um raio de sol iluminando o rosto sereno de um homem santo.
                             Deitado na canoa karajá e livre como o vento,
                             um raio de sol pousou sobre ele e era Deus a beijá-lo.
                             Confesso,
                             eu vi,
                             nada extraordinário aconteceu,
                             apenas isso,
                             tão natural, tão belo,
                             a luz do sol na manhã do dia 12 de agosto de 2020
                             acariciou o rosto já ressuscitado de Pedro Casaldáliga
                             e levemente se afastou,
                             como todas as manhãs!
Na época da repressão militar à Prelazia de São Félix do Araguaia, o nome pelo qual os militares se referiam a Pedro era “Palito Elétrico”. Nisso eles acertaram.
Magrinho, inquieto, mãos com gestos defi nitivos, palavra em carne viva, estava sempre ligado na tomada.
Descansa agora, irmão, eu sei que, do outro lado da vida, você está em boas companhias. Continue vivo nos sonhos, ideais e projetos que deram sentido a tua vida e dão sentido a nossas vidas. Vivo também, e mais do que
nunca, em nossa Agenda Latino-americana Mundial.