POBRES DE PEDRO, ESTAMOS MAIS RICOS DE CORAGEM

 

Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil

Dom Pedro se foi. Sem ele, todos sabemos, será muito mais difícil atravessarmos a escuridão e nos movermos no meio do escombro desse mundo, cujos alicerces e paredes despencam à nossa frente, por mãos daqueles e daquelas que deveriam cuidar de suas bases. Será bem mais difícil agora, sem Pedro, como tem sido sem Tomás e todas as outras pessoas que nos precederam.

Pedro foi radicalmente cristão. Como pastor - padre e bispo - cuidou dos seus irmãos e irmãs pobres. Despojou-se de todo e qualquer sinal de poder. Infelizmente, ao longo dos séculos, a Igreja Instituição caiu na tentação do poder e - consciente ou inconscientemente - absorveu da sociedade imperial, feudal e capitalista, maneiras de ser e agir, que não tem nada a ver com o Evangelho. E - o que é pior - sempre procurou justificar e legitimar essas maneiras de ser e agir com argumentos religiosos (exemplos: as mitras e os báculos dos bispos, cobertos de ouro e pedras preciosas; a sagrada púrpura dos cardeais, que de sagrado não tem nada; a tiara com três coroas - usada pelo papa até o Concílio Vaticano II - simbolizando que o poder religioso do papa estava acima do poder dos reis e dos imperadores). Quanta hipocrisia!

Em sua ordenação episcopal, à beira do rio Araguaia, Pedro - no lugar da mitra, do báculo e do anel tradicionais - usou um chapéu de palha, um remo de pescador e o anel de tucum (palmeira amazônica). Pedro viveu intensamente a com-paixão (o sofrer juntos). Ele sempre esteve ao lado dos índios (os povos indígenas), dos posseiros e de todos os trabalhadores e trabalhadoras. Ele se fez pobre com os pobres, oprimido com os oprimidos, explorado com os explorados, excluído com os excluídos, descartado com os descartados e marcado para morrer com os marcados para morrer. Como escritor e poeta - em parceria com outros escritores e poetas e com músicos - Pedro cantou as lutas do povo por outro mundo e outra Igreja possíveis.

O nosso irmão Pedro - junto com seus companheiros e companheiras, irmãos e irmãs de caminhada - lutou incansavelmente contra o latifúndio, a grilagem de terras públicas, o trabalho escravo, a violência contra as mulheres, o racismo e todo tipo de discriminação. Combateu as atrocidades da ditadura civil e militar; lutou pela democracia e integração latino-americana e caribenha (a Pátria Grande); pela demarcação das terras indígenas; pela Reforma Agrária Popular e pela produção agroecológica familiar. Lutou ainda em defesa da Amazônia, do Cerrado, do meio ambiente em geral e da Irmã Mãe Terra, Nossa Casa Comum. Enfim, lutou em favor da vida e da vida para todos e todas. “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundância” (Jo 10,10).

Pedro participou da criação do Conselho Indigenista Missionário (CIMI) e da Comissão Pastoral da Terra (CPT); promoveu - com seus companheiros e companheiras - as Romarias da Terra e das Águas e as Romarias dos Mártires; apoiou a Teologia da Libertação e a caminhada das CEBs: novo jeito de ser Igreja e - como ideal e meta - novo jeito de toda a Igreja ser.

O nosso irmão Pedro se encarnou na vida do povo e viveu radicalmente a Opção pelos Pobres: o caminho de Jesus de Nazaré. A partir dos Pobres, ele esteve sempre antenado com o mundo (a Pátria Maior) na escuta dos sinais dos tempos. “Para desempenhar sua missão (ser “Igreja em saída”), a Igreja, a todo momento, tem o dever de escutar (perscrutar) os sinais dos tempos e interpretá-los à luz do Evangelho”. Por conseguinte, “é necessário conhecer e entender o mundo no qual vivemos, suas esperanças, suas aspirações e sua índole frequentemente dramática” (Concílio Vaticano II. A Igreja no mundo de hoje - GS 4).

Por fim, não se encontra nada verdadeiramente humano que não tenha ressoado no coração de Pedro (Cf. Ib. 1).

As palavras do mártir vivo, jornalista Pinheiro Sales, de Goiânia - vítima dos horrores da ditadura e intrépido defensor dos Direitos Humanos - em sua bonita Carta sobre Pedro: “Na vida, solidificou uma histórica parceria com todos os homens e mulheres que, neste momento, não aceitam a violência, o ódio e a estupidez de um governo indiferente à tragédia de mais de 100 mil pessoas mortas nos cinco meses de pandemia” (Jornal O Popular, 10/08/20, p. 3).

É com o seu testemunho, contudo, que contamos para continuar. Poucos, como Pedro, nos deixaram tanto. Suas grandezas estão na simplicidade, na coragem, no compromisso sério, na radicalidade evangélica, na sabedoria insone, no carisma, na doçura misturada com a força. Desde lá, descalço sobre a terra vermelha, com mãos frágeis e corpo franzino, enfiado entre os índios e lavradores, recolhendo sangues e suores, sangrando ele mesmo sob as noites profundas e abandonadas dos sertões brasileiros, Pedro falava de esperanças e de liberdades. Sua presença enchia de tensão os palácios e os altares, porque seu corpo torto e trêmulo, conseguia transitar onde, a poucos, é possível, sem os trajes e as pompas que ele tanto denunciou. A voz adocicada portava conteúdos ácidos, quando era necessário, porque o seu compromisso era com as causas maiúsculas, que nunca cabem no silêncio constrangido da paz que muitos desejam, à força das injustiças.

Vindo das mesmas terras frias de Domingos de Gusmão, Pedro também sentia aquele vento que “curtia as almas” que, há mais de 800 anos, “renovou a fé da Igreja” com nova pregação. Pedro, como Domingos, por tê-lo entendido tão bem, atualizou sua versão sertaneja com detalhe e falou da união dos povos, a partir do íntimo. Foi latino-americano como poucos, teimou por essa causa da Pátria Grande, a tal ponto de parir aquele que seria o livro mais querido entre os militantes sociais e agentes pastorais: a Agenda Latinoamericana, que logo se tornara mundial. Com Lília Azevedo, João Xerri e o Grupo Solidário São Domingos, fundou o projeto que hoje é coordenado, no Brasil, pela Comissão Dominicana de Justiça e Paz do Brasil. Esse era o seu estilo: dar à luz e doa-lo ao mundo. Foi assim com o CIMI, com a CPT e tantas outras iniciativas que contaram com sua inspiração e arrojo.

Quando o encontrávamos ali, à beira dos riachos amazônicos, nas torrentes do Araguaia, chapéu de palha à testa, comendo em algum acampamento ou refletindo sob uma mangueira, o que se via era tão somente um homem encarnando as causas da verdade e do amor, rabiscadas em poemas, cujo valor expandem aos corações aquele mesmo líquido amniótico. O ventre desses nascimentos não era outro senão o mundo mesmo, todas as circunstâncias, as fragilidades e as contradições. Ali, cheio de mundo e sem temor, Pedro parecia se apresentar diante do Mestre para aprender, diretamente na fonte, as coisas do Evangelho que anunciava. Suas intuições, por isso, tinham ainda aquela molhança das origens, cuja potência é poder de ressurreições. O que ele sabia, sabia de cor, por isso, ele só falava do que o coração estava cheio.

Hoje, quando o sol estava a meio plano, ficamos mais pobres do que nunca. Pobres de Pedro, de sua presença, de seus conselhos, de suas verdades. Mas o selo que ele assentou com barro e sangue nas nossas testas e o anel de tucum em nossos dedos, hão de nos inspirar na travessia dessa longa noite que padecemos, sob os fascismos e as ditaduras celebradas pela ignorância de parcela de nossa sociedade adormecida. Agora que os pobres mais precisam, é esse sinal que devemos seguir, tocha em punho, caminhando longe e decididos, para onde o próprio Pedro nos levou. Pobres de Pedro, estamos mais ricos de coragem.

O Testemunho de Pedro Casaldáliga nos desafia:

  1. Leia as mensagens e poemas que falam de Pedro – tanto os que estão nesta sessão, como de outros de seus escritos.
  2. Ao ler, destaque as passagens que mais o tocam...
  3. Com elas, elabore um testamento, que inspire sua prática.