Povo Negro: Mística e ecologia
Povo Negro: Mística e ecologia
Frei David Raimundo Santos
Para a Mística afro, a vida é um atributo da pessoa humana, das plantas, dos animais, da terra, da pedra, da água, do ar... Todos têm AXÉ, têm VIDA! Portanto, precisa haver uma grande comunhão com todos os elementos da natureza, onde a relação precisa voltar a ser de parceria e corresponsabilidade.
Se a proposta ecológica/ideológica dos Quilombos e palenques tivesse contagiado ao Continente, não teríamos os vários acidentes ecológicos verificados ao longo dos últimos anos. O código ecológico vivido até hoje pelas pessoas que têm consciência religiosa, ecológica e cultural africanas é um dos mais profundos do mundo e com melhor possibilidade de resultados práticos, para o bem do conjunto da sociedade.
As estruturas organizativas, sociais, políticas e religiosas dos Quilombos/Palenques tinham como uma das principais finalidades a valorização da Vida. Ela consiste fundamentalmente em ajudar os quilombolas a crescerem com uma alta estima, superando toda humilhação passada no contato com o colonizador. Gostar de si, do seu povo, dos seus traços físicos, dos seus cabelos, dos seus costumes, de sua identidade cultural era dizer «gosto da vida, estou em sintonia com a Natureza, gosto do Autor da Vida!». Portanto, professar o amor à vida, à ecologia, era uma forma de vivenciar e professar o amor ao Deus da Vida. Na compreensão antropológica africana, a felicidade de viver deveria ser sempre celebrada. Daí se compreende que o viver africano é uma eterna liturgia celebrada com o corpo, pois era e é a forma mais autêntica, transparente e profunda de unir vida, ecologia e Deus!
Os Quilombos/Palenques, naquele novo espaço de liberdade, poderiam fechar-se somente em sua compreensão religiosa tradicional africana. No entanto, eles sabiam diferenciar Jesus Cristo e seu Evangelho da prática dos cristãos colonizadores em terras brasileiras. Os Quilombolas reprovavam a prática religiosa dos cristãos, pois não valorizavam a justiça e o respeito ao diferente; e por outro lado, souberam perceber o potencial libertador trazido por Jesus e seu Evangelho, e o abraçaram.
Em uma das guerras contra os quilombolas palmarinos, em 1645, essa chefiada por Blaer-Reijmbach, o escrivão relata que encontrou no centro do Mocambo Grande Palmares uma casa religiosa com imagens de santos católicos, entre elas a imagem do Menino Jesus, ricamente adornada com objetos religiosos africanos. A inculturação, tão discutida hoje, já era algo normal e praticada no espaço de liberdade chamado de Quilombo. A ecologia era parte integrante da forma de vida de todos. Os sacerdotes eram escolhidos entre os mais capazes, aqueles que possuíam espírito de liderança, sabedoria e profundo conhecimento da natureza. A intimidade com o Deus Pai Todo-poderoso, OLORUM (Olo Orum, senhor do orum, senhor dos espaços terrestres, ecológicos e celestes), era a principal qualidade nos sacerdotes. Já entendiam como normal e natural o sacerdócio casado, bem como o sacerdócio feminino, dimensões ainda hoje, em pleno século XX, negadas pela principal religião ocidental.
Frei David Raimundo Santos
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