Precisa mudar o sistema

Precisa mudar o sistema

Naomi Klein


“O convite para ir ao Vaticano foi uma surpresa total para mim. Considerando os ataques que vêm do Partido Republicano em torno do tema da mudança climática, e dados os interesses existentes por trás das empresas de combustíveis fósseis nos Estados Unidos, foi uma decisão particularmente corajosa a de me convidar”, comentou a escritora canadense Naomi Klein a jornalistas presentes ao evento celebrado no Vaticano para comentar a encíclica Laudato Si’ do papa Francisco. Segue um resumo de seu pronunciamento naquele evento.

“Agradeço sinceramente ao Conselho Pontifício para a Justiça e Paz e à CIDSE por nos receber aqui e ter convocado esta reunião a qual eu tanto espero. É para mim uma honra estar aqui, apoiar e celebrar a publicação da histórica Encíclica papal”.

A Encíclica se dirige igualmente a mim

No começo da Laudato S i, o papa Francisco disse que ele não dirigiu o texto somente ao mundo católico, mas a cada pessoa que vive neste planeta. Quero dizer-lhes que desde então a mim, uma judia laica e feminista, que ficou tão surpresa quando foi convidada para o Vaticano, o texto igualmente se dirige a mim.

“Não somos Deus”, declara a Encíclica. Todos nós, seres humanos, sabíamos disso. Porém, nos últimos 400 anos os vertiginosos progressos científicos fizeram com que alguns passassem a acreditar que estávamos a ponto de saber tudo que havia de se saber sobre a Terra, o que nos converteria em amos e senhores da Natureza, lembrando a frase memorável de René Descartes. O fato de termos chegado a este ponto, dizia, era o próprio plano de Deus.

A ideia persistiu por muito tempo, até que avanços posteriores da Ciência nos mostraram algo muito diferente. Enquanto queimávamos quantidades cada vez maiores de combustíveis fósseis, convencidos de que com nossos navios repletos de mercadorias e nossos jatos supersônicos atravessando o mundo como se fôssemos deuses, os gases de efeito estufa acumulavam-se na atmosfera, retendo uma quantidade cada vez maior de calor. Agora não enfrentamos a realidade: não somos nem amos e nem senhores, e estamos desencadeando forças naturais muito mais poderosas que nós e que nossas máquinas mais sofisticadas. Ainda há tempo para nos salvarmos, mas apenas se abandonarmos o mito da dominação e senhorio e aprendermos a trabalhar com a Natureza, respeitando e aproveitando sua capacidade intrínseca de renovação e regeneração.

Há quem veja na interconexão um prejuízo humilhante à sua condição. A ideia lhes parece insuportável e, apoiados ativamente por atores políticos financiados por empresários dos combustíveis fósseis, optam por negar a Ciência.

Apesar de tudo, está mudando na medida em que o clima muda, e é provável que mudará ainda mais com a publicação da Encíclica, que poderia colocar os políticos norte-americanos que se amparam na Bíblia em uma situação complicada para se opor às ações contra a mudança climática.

Momento muito perigoso

Passei as últimas duas semanas lendo centenas de reações à Encíclica. E ainda que as reações tenham sido em geral, extremamente positivas, notei um argumento comum em muitas críticas: o papa Francisco – dizem – pode estar correto no que diz respeito às temáticas científicas que reivindica, incluídos seus aspectos morais, mas deve deixar as temáticas econômicas e políticas aos especialistas, que entendem como os mercados podem resolver qualquer problema de forma eficaz.

Discordo totalmente disso. A verdade é diferente: chegamos a um momento tão perigoso em parte porque muitos especialistas econômicos falharam conosco ao empregar as poderosas habilidades tecnocráticas sem sabedoria. Elaboraram modelos que dão um valor escandalosamente escasso à vida humana, sobretudo à vida dos pobres, e dão um enorme valor à proteção dos benefícios empresariais e ao crescimento econômico obtido a qualquer custo. Com o sistema deformado de valores nos deparamos com mercados de carbono ineficazes ao invés de estabelecer impostos substanciais sobre o carbono e regulamentar as regalias dos que extraem combustíveis fósseis. E assim chegamos ao objetivo de reduzir em apenas 2ºC a temperatura global, apesar de que com a redução nações inteiras poderão desaparecer.

Em um mundo em que o lucro econômico coloca-se sempre acima das pessoas do planeta, a economia climática tem absolutamente tudo a ver com a ética e a moral. Se concordamos que colocar em risco a vida na Terra representa uma crise moral, então isso exige que ajamos.

Hora de agir

E atuar não significa deixar o futuro ao acaso ou aos ciclos de ascensão e queda do mercado. Agir significa estabelecer políticas dirigidas para regular a quantidade de carbono que pode ser extraída da Terra. Significa políticas que nos levem a empregar 100% de energias renováveis nas próximas duas ou três décadas, ou no mais tardar até meados do século, e não até o final do século. Significa compartilhar o uso dos bens comuns, como a atmosfera, com base na justiça e igualdade, e não com base no princípio de que vencedores ganham tudo, nem com base na ideia de Ottmar Edenhofer, professor de economia da mudança climática, quando afirma que “o poder faz o direito”.

Clima estável e economia justa

Está surgindo aceleradamente um novo tipo de movimento climático que leva em conta a situação. Ele tem por base a verdade mais corajosa da Encíclica: o sistema econômico atual alimenta a crise climática e, ao mesmo tempo, atua ativamente para impedir que adotemos as medidas imprescindíveis para evitá-la.

O atual movimento climático se sustenta no princípio de que para evitar que a mudança climática seja incontrolável nos é essencial uma mudança de sistema. E porque o atual sistema está alimentando uma desigualdade cada vez maior, diante do desafio crucial temos a possibilidade de resolver ao mesmo tempo as múltiplas e simultâneas crises. É possível obter ao mesmo tempo um clima estável e uma economia justa.

A conscientização quanto à oportunidade se expande. E vemos alianças surpreendentes, antes inimagináveis, como o fato de eu estar aqui no Vaticano, assim como sindicatos, organizações indígenas, comunidades de fé, grupos ecologistas e científicos, trabalhando de forma mais integrada do que nunca. Não concordamos em tudo nas coalizões, mas todos entendemos que os desafios são tão grandes, o tempo tão curto e a tarefa tão imensa, que não podemos nos dar o luxo de permitir que as diferenças nos dividam.

Difícil, porém não impossível

Não devemos abandonar a ideia de que ainda há tempo para nos afastarmos do perigoso caminho que trilhamos, o qual está nos levando não a 2ºC de aquecimento, e sim a 4ºC. Poderíamos conseguir manter o aquecimento abaixo de 1,5ºC se fosse nossa prioridade coletiva.

Sem dúvida seria difícil, como foram o racionamento e a reconversão industrial durante os períodos de guerra. Seria uma meta tão ambiciosa quanto os programas de obras públicas e de combate à pobreza executados durante a Grande Depressão e a Segunda Guerra Mundial.

Mas difícil não é o mesmo que impossível. Seria uma paralisia covarde nos rendermos diante de um desafio que salvaria muitas vidas e evitaria tantos sofrimentos, simplesmente porque é difícil e caro, e porque iria requer sacrifício dos que têm tanto, mesmo que possamos sobreviver com menos. Não existe no mundo nenhum custo-benefício capaz de justificar semelhante covardia.

Poesia, porém com coragem

A Encíclica me surpreendeu por sua coragem e poesia. O texto é uma combinação maravilhosa de linguagem ordinária e poética, em um texto comovente que fala ao coração.

A Santa Sé não está permitindo que seja intimidada, sabendo como sabe que dizer verdades poderosas provoca inimigos poderosos. Vivemos em um tempo em que falta coragem política. Estamos acostumados a ver os políticos ativar a marcha a ré ao primeiro sinal de controvérsia.

Por isso, tanto dizer verdades controversas como não se retratar quando as verdades questionam interesses poderosos criados é algo muito recente no cenário político e essencial na realidade que estamos vivendo.

 

Naomi Klein

Montreal, Canadá