Processo revolucionário Salvadorenho e seu Atual impasse

 

Lorena Peña Mendoza

é um caso interessante para a reflexão da esquerda
na América Latina

Muitos se perguntam: como é possível que uma poderosa guerrilha, que soube transformar-se em partido político, que soube ganhar importantes quotas de poder local e legislativo, que soube conquistar,
consecutivamente, duas presidências da República, de repente, cai estrepitosamente, não só a nível
eleitoral, com resultados realmente deploráveis, mas também que se torna, de um movimento que derrotou
a ditatura militar e os multimilionários, no imaginário desse mesmo povo, um partido traidor e acomodado?
E a outra pergunta é: se, diante dessa situação da FMLN , emergiu um líder megalomaníaco neoliberal,
com pensamento fascista e atitude ditatorial; ou se tem emergido, como, inclusive, alguns líderes latinoamericanos
de esquerda afi rmam, um jovem presidente antissistema, que está enfrentando a democracia tradicional burguesa?
Por outro lado, fazemo-nos a pergunta de: como tem sido possível que uma maioria, nunca vista depois da guerra, lhe outorgara, eleitoralmente, dois respaldos poderosos, em matéria de votos, que hoje lhe permitem controlar a assembleia legislativa, o poder executivo e, com medidas de fato, o órgão judicial?
Quero dizer-lhes, a princípio, que eu sou uma das militantes da FMLN e feminista que considero que
vivemos debaixo de um governo ditatorial, que está desmontando, passo a passo, as conquistas feitas pelo
povo e a FMLN, nos acordos de paz de El Salvador, os quais permitiram, por métodos pacífi cos, que a
esquerda e o povo ascendessem a importantes quotas de poder municipal e legislativo, o restabelecimento
das liberdades democráticas, um sistema eleitoral independente, a criação da Procuradoria de Defesa
dos Direitos Humanos, a criação do Instituto Nacional de Acesso à Informação Pública, e que permitiu, à
FMLN, exercer, por 10 anos consecutivos, a presidência da República, ganhas nas eleições livres nos anos de
2009 e de 2014.
Este regime, liderado pelo presidente Bukele, aliado com importantes atores da oligarquia desse país, não só está desmontando os ganhos democráticos, mas também os importantes avanços em matéria social e econômica, conquistados sob governos de esquerda. As ações mais visíveis, nesse sentido, tem sido o assalto militar ao Congresso em 9 de fevereiro de 2020, o golpe de Estado contra a Câmara Constitucional e da Procuradoria Geral da República, no 1º de maio recém passado, assim como a perseguição e o ataque judicial e mediático a seus
opositores, especialmente de esquerda, tanto da FMLN como da imprensa e das organizações sociais.
O estabelecimento do sistema de proteção social universal, que a FMLN implantou, que, nos atos e por lei estabeleceu uma amplíssima reforma da saúde pública, que incluiu o estabelecimento de uma rede de serviços públicos de saúde até o último rincão do país; que estabeleceu, pela primeira vez, a saúde pública universal e gratuita, eliminando as cobranças que se faziam, que estabeleceu a educação pública universal e gratuita, desde a educação infantil até a universidade, incluindo, não só o direito de não cobrar escolaridade, mas também dotou de uniformes, materiais escolares, alimentação e calçado gratuito a todo o estudante do setor público; que gerou
centenas de milhares de empregos, que duplicou o salário mínimo rural, que incrementou em mais de 40% o salário mínimo urbano; que levou adiante uma importante reforma tributária, mediante a qual se liberou do pagamento de imposto sobre a renda os setores populares, que ganhavam menos de $500 mensalmente, e que incrementou em 5% do mesmo imposto o segmento mais alto, que inclui os altos executivos e os burgueses desse país, e incluiu o imposto às transações financeiras e regulamentos para os que utilizam os paraísos fiscais. Reforma
que permitiu financiar o sistema de proteção social  niversal implantado e, da mesma forma, levar adiante um programa de reativação do agro, que estava  quebrado pelas políticas neoliberais; as políticas econômicas dos governos de esquerda promoveram o desenvolvimento de uma nova rede de pequenos produtores, vinculados aos produtos utilizados no programa de educação, reduziram substancialmente a pobreza e a desigualdade, feitos que foram documentados e reconhecidos pela CEPAL. Todos esses avanços estão sendo desmontados a passo firme e contínuo, pelo regime atual, substituindo-o por um programa de entrega de cestas com alguns alimentos,
com ações midiáticas de grande envergadura, que, por sua vez, encobrem um verdadeiro roubo no erário
público, corrupção, um endividamento público sem controle e, por último, a incorporação de bitcoin, por
decreto de lei, como moeda de circulação legal, o que se espera converter El Salvador num grande centro de
lavagem de dinheiro, e lhe dar o golpe de misericórdia às tão maltratadas contas públicas.
E nos perguntamos de novo: como tem sido possível esse fenômeno?
A análise e a investigação devem continuar, sem dúvida, permita-me compartilhar algumas de minhas
reflexões.
Quando um governo de esquerda realiza importantes mudanças, mas considera a população como beneficiária, e não como sujeito protagonista de tais mudanças... ocorre que, apesar do enfrentamento de classes, que implicam essas mudanças, esta batalha se dá entre o partido e o governo isolados, sem promover a organização, conscientização e mobilização do povo para entender as mudanças, avaliá-las e defendê-las.
Quando um governo de esquerda chega ao poder por vias democráticas, existe um sistema de pesos e
contrapesos que a direita utiliza com eficácia, e isso limita a profundidade das mudanças e as medidas
imediatas que a população espera dos governos de esquerda e, a esta realidade, se agrega o uso de
quantidades de dinheiro, para manipular a opinião pública pelos diferentes meios, tradicionais e modernos,
o governo e seu partido terminam sendo vistos como ineficientes e “acomodados” ao poder que detêm.
O debate sobre a contradição entre mudança e governabilidade, aparece a todo momento e, em mais de uma ocasião, a governabilidade se sobrepõe às aspirações de mudança. Repito, se o governo e o partido não estão em diálogo constante e direto com as organizações populares, a frustração se apodera delas.
Se, a esta delicada situação, somamos que, efetivamente, ainda que seja de maneira individual e não representativa, nem do partido, nem do governo, dão-se casos de companheiros envolvidos em atos de corrupção, a desmotivação e desencanto crescem. E, todavia, a direita amplia e generaliza esses casos,
dizendo: “os da esquerda já não cantam as casas de papelão”.
Depois da derrota eleitoral de 2019, a FMLN elegeu uma nova direção, após a renúncia voluntária da
Comissão Política daquele tempo, e nos deparamos, hoje, com outro grave problema que, espero, se
resolva corretamente nos próximos meses, já que, se não se resolver, consolidará um narco-estado,
autoritário, neoliberal, que atingirá mais a fundo o movimento popular e o povo em geral.
Refiro-me ao tema de quais são os objetivos desse período, a definição clara de nosso inimigo principal, nossa política de trabalho com os movimentos populares e nossa política de alianças. A nova direção da FMLN ainda se questiona se o correto é enfrentar, sem vacilos, o regime, ou ser uma “oposição construtiva”, entre colaborar com eles ou combater politicamente suas medidas. De igual forma, não se tem claro se é necessário recuperar o poder
institucional, ou apenas “trabalhar com as bases”.
A meu critério, um partido revolucionário, que se propõe a contar com o poder social – desde abaixo
– e o poder institucional – nos espaços de governo, inclusive a presidência – será qualquer coisa, menos
um movimento político revolucionário. 
O debate segue, nenhuma declaração feita neste artigo, pode ser absoluta, sem dúvida, atrevo-me a
compartilhar esses pontos de vista, com o propósito de contribuir na análise desses novos processos, e
à busca de estratégias e planejamentos que ajudem nossos povos e movimentos e encontrar novos
caminhos de libertação.