Proteger a vida, a causa comum de nossa geração.

 

Francia Márquez, Harrinson Cuero Campa.

“Sou porque somos. Não me perseguem, perseguem o meu povo por defender a vida, não só deles, mas sim de todos. O território é a vida e a vida não se vende, se ama e se defende.”

Já não há dúvidas! Milhares de cientistas, ao redor do mundo, e organizações internacionais, como a ONU, confirmam o que foi avisado pelos povos milenares há séculos: a vida na casa grande está em risco. A única saída é uma mudança radical em nossa cosmovisão, na relação da humanidade com a Terra e com os demais seres que a habitam.  Mas quem lucra às custas do sofrimento humano e da deterioração ambiental, resiste, a fim de manter seus privilégios, e atentam contra nossa comunidade e contra líderes sociais e ambientais.

                Jornalismo mercenário e lutas sociais?

                “Uma meia verdade é uma grande mentira”, como fala o ditado popular. São apresentadas diferentes versões do que ocorre na comunidade colombiana de La Toma, o motivo que impulsionou Francia Márquez a fazer parte da luta coletiva do povo negro. Algumas versões de aspecto étnico, outras de ambiental ou de gênero, mas há aqueles que, por más intenções, tentam confundir, apresentando histórias de partes diferentes. Com isso, aumentam os riscos de morte dos líderes locais e a pressão econômica e armada sobre o território. No fundo, esses relatos parciais procuram favorecer àqueles contra os direitos coletivos dos povos que resistem e lutam por cuidar da casa grande.

                Uma análise séria sobre a correção de La Toma coloca uma luz no contexto de violência sociocultural, em que a mineração legal e ilegal ocorre no país, assim como a agroindústria da palma. Mas, sobretudo, um jornalismo sério buscaria prevenir que seus escritores incrementassem o risco de morte sobre os líderes em territórios tão complicados, como os das comunidades étnicas do litoral pacífico e dos vales inter-andinos; o conselho comunitário afrodescendente de La Toma é um deles.

                A Constituição de 1991 declarou a Colômbia como um Estado pluriétnico e multicultural, e ratificou os direitos coletivos dos povos.  Desde então, não há fim nos ataques por parte de atores de poder real contra esses direitos. O jornalismo tendencioso é parte integral desta estratégia. Este ataque sistemático, fruto da cumplicidade entre instituições estatais e privadas, busca o desenraizamento da população, mudando radicalmente sua cosmovisão e projetos coletivos de vida. Paradoxalmente, tem sido a Corte Constitucional colombiana quem tem revelado, oficialmente, a pretensão de poderes escuros sobre o controle dos recursos naturais dos territórios de comunidades étnicas. Ao analisar esse fenômeno, a Corte identificou “fatores transversais” que afetam na violação sistemática dos direitos territoriais das pessoas negras : exclusão estrutural, fraqueza jurídica do território e as pressões por interesses de corte extrativista (agropecuários ou minério-energético).

                São esses interesses extrativistas (Globais) que beneficiam o jornalismo mercenário. Tudo nos faz pensar que a meta é romper a resistência que apresenta os direitos coletivos. Interesses mineradores, palmeiras, narcotráfico e megaprojetos estariam por trás das pressões sobre as autoridades étnicas. Estas têm sido silenciadas desde 1997 na mira do fuzil, ameaças ou montagens judiciais.

                Na estratégia contra os direitos territoriais e coletivos, é possível identificar um padrão:

  • Estabelece-se um interesse econômico sobre territórios de comunidades negras, indígenas ou camponesas;
  • os locais ativam seus instrumentos legais para defender seus direitos;
  • o Estado responde, normalmente, com o aparato judicial, com alguma medida que detém temporariamente o desenvolvimento legal do projeto. Apesar das medidas, o projeto continua, graças a truques legais e a pressões de forças ocultas (mercenários);
  • durante o longo processo judicial, a comunidade é fragmentada, os líderes ameaçados e/ou eliminados, física ou politicamente. Muitas vezes, diante da impossibilidade de quebrar os líderes, faz-se uso de colonos, pessoas de outras regiões do país, que se converteram no braço político visível dos “investidores”.

As armadilhas jurídicas e as sentenças da Corte Constitucional.

Em janeiro de 2009, a Corte Constitucional emitiu ordens diretas a diferentes entidades do Estado em favor das comunidades negras e indígenas, porém, nenhuma delas foi concluída, e as comunidades seguem vulneráveis e sendo violadas, e nenhum funcionário do Estado foi advertido por desrespeitar as ordens do alto tribunal. As comunidades de La Toma acreditaram que a sentença da Corte Constitucional de 2010 havia deixado, sem efeito, os títulos mineiros daqueles que pretendiam desalojar suas terras. Nove anos depois, se soube que foram apenas suspensas temporariamente, não eliminadas, aguardando a realização de uma consulta prévia. Agora, as autoridades tentam facilitar o avanço do projeto mineiro.

À primeira vista, uma consulta seria louvável, pois implicaria em que as comunidades poderiam decidir, mais de perto, seus interesses; mas, no cenário atual, a consulta seria uma hipocrisia democrática, que facilitaria a entrega do território étnico às empresas mineradoras. Desde a suspensão do título mineiro, àquela data, as autoridades locais foram sendo debilitadas, as comunidades fragmentadas e os estrangeiros tomaram posição com importantes janelas mediadoras, para opor-se, junto a alguns locais, às medidas de proteção territorial dispostas pelo Estado.

Expor a maior risco de morte aos líderes que resistem.

                O número de líderes assassinados supera os 400, desde a assinatura dos acordos de paz em 2017, e o número segue em alarmante aumento em 2020. Mas isso não impede que o jornalismo mercenário e o Estado, como parte da estratégia, cumpram seu papel ao negar ou minimizar, nos meios de comunicação, o extermínio dos líderes sociais.

                Francia Márquez, talvez a dirigente étnica mais ameaçada de morte do país, que sofreu, há pouco tempo, um atentado junto a outros dirigentes afros da região, é uma das vozes à frente na defesa dos direitos territoriais das comunidades do município de La Toma e dos direitos coletivos no país, e aí está a fonte de sua perseguição.

Diante do fracasso, em todas as tentativas para debilitar a determinação desta mulher negra e dos demais membros da Junta do Conselho comunitário, a estratégia agora parece ser eliminá-los politicamente, enfraquecendo sua liderança, ao fragmentar as comunidades que eles representam. Mas é importante ressaltar que isto não é contra Francia ou La Toma, representa um ataque contra os direitos coletivos dos povos e do direito à vida com dignidade das gerações futuras. Será que as comunidades da cidade de La Toma acabarão encurraladas pela megamineração, em face do silêncio cúmplice da sociedade?  Será que os direitos coletivos convertidos em adornos jurídicos acabarão, como as muitas sentenças de tutela da Corte Constitucional? Será que o jornalismo sério e responsável vai reagir a este ataque direto a seu trabalho?

As diferentes mensagens de alerta, que envia La Pachamama, são um urgente convite à ação coletiva da humanidade, a despertar-se e a levantar-se contra a crise ambiental. São a prova de que, a cada dia, a vida no planeta se reduz e que, somente com o levantamento comunitário coordenado, a partir de todos os pontos do planeta, pode-se parar esta política de morte.

As comunidades europeias, por séculos separadas e individualizadas, devem entender que seu estilo de vida está na base da crise climática, social e ética que enfrentamos. Entender que seus governos (elites), no topo do modelo capitalista, impõem pressões insuportáveis a países com o potencial ambiental e sociocultural para encontrar alternativas. Os cidadãos das potências coloniais e neocoloniais devem assumir sua responsabilidade de séculos de abusos ambientais e reorganizar seu estilo de vida. O planeta não discriminará entre primeiro e terceiro mundo, frente à destruição global que se aproxima. Devemos agir agora, não há tempo para dúvidas e, menos ainda, para os discursos.