Raízes históricas da nossa crise ecológica

Raízes históricas da nossa criseecológica

Lynn White Jr


Em 1967 Lynn White publicou na revista «Science» [155 (1967) 1203-1207] um artigo que se converteria em referência clássica. White disse que nosso estilo de vida e modo de relação com a natureza dependem do que pensamos e cremos coletivamente, e que, para mudar a maneira de nos relacionarmos com a natureza, devemos começar por mudar aquilo que pensamos e cremos a respeito dela. O artigo trata de mostrar que a visão de fundo e os axiomas judeu-cristãos subjacentes no mundo ocidental são os culpados da atual crise ecológica mundial. Apresentamos um extrato do texto.

Deveríamos observar, com certa profundidade histórica, os pressupostos que são a base da tecnologia e ciência moderna. A ciência tem sido tradicionalmente aristocrática, especulativa, intelectual em seus propósitos; a tecnologia se atribui às classes baixas, é empírica e orientada pela ação. A súbita fusão destas duas áreas, pela metade do século XIX, está certamente relacionada às revoluções democráticas pontuais e contemporâneas que, reduzindo as barreiras sociais, tenderam a sustentar uma unidade funcional entre o cérebro e a mão. A nossa crise ecológica é produto de uma cultura democrática emergente, completamente nova. A questão é se um mundo democratizado pode sobreviver às suas próprias implicações. Presumivelmente, não podemos, a menos que reconsideremos nossos axiomas.

A visão medieval do ser humano e da natureza

O agir das pessoas em relação à ecologia está vinculado com o que elas pensam acerca de sua própria relação com o mundo que as rodeia. A ecologia humana é profundamente condicionada pelas crenças sobre nossa natureza e destino, quer dizer, pela religião. Aos olhos dos ocidentais isso é muito evidente, digamos, na Índia ou Ceilão. Isso é igualmente verdadeiro para nós e nossos antepassados medievais.

A vitória da cristandade sobre o paganismo foi a maior revolução psíquica na história da nossa cultura. Hoje está na moda dizer que, para o que der e vier, vivemos “na era pós-cristã”. Certamente, as formas do nosso pensamento e linguagem deixaram basicamente de ser o cristão, mas, segundo meu parecer, a essência muitas vezes permanece surpreendentemente similar àquela do passado. Os nossos hábitos cotidianos de agir, por exemplo, são dominados por uma crença implícita no progresso perpétuo que eram desconhecidos à antiguidade greco-romana ou ao Oriente. Sua raiz está arraigada na teologia judaico-cristã e não pode se separar dela. O fato de que os comunistas a compartilham, simplesmente evidencia que tanto o marxismo como o islamismo são uma heresia judaico-cristã. Continuamos hoje vivendo, como vivemos durante aproximadamente 1700 anos, basicamente num contexto de axiomas cristãos.

O que o cristianismo disse ao povo sobre suas relações com o ambiente? O cristianismo não só herdou do Judaísmo um conceito de tempo como não repetitivo e linear, como também uma fabulosa história da criação. Um Deus amoroso e todo poderoso havia criado luz e escuridão, os astros celestes, a terra e todas as plantas, os animais, pássaros e peixes. Finalmente, Deus criou Adão e em seguida Eva para impedir o homem de ficar só. O homem nomeou a todos os animais, estabelecendo assim o seu domínio sobre eles. Deus planejou tudo isso de forma explicita para benefício do homem e sob a seguinte regra: toda a criação física não tinha outra finalidade senão a de se submeter aos objetivos do homem. E, embora o corpo do homem seja feito do barro, ele não é simplesmente parte da natureza: ele é feito a imagem e semelhança de Deus.

O cristianismo é a religião mais antropocêntrica que o mundo conheceu. O cristianismo, em contraste absoluto com o paganismo antigo e as religiões da Ásia (excetuando, possivelmente, o Zoroastrismo), não só estabeleceu um dualismo entre homem e natureza, mas também insistiu que era vontade de Deus que o homem explorasse a natureza em benefício próprio.

No meio popular isso ocorreu de um modo interessante. Na Antiguidade cada árvore, cada nascente, cada córrego, cada montanha tinha seu próprio espírito protetor. Antes de alguém cortar uma árvore, cavar uma mina em uma montanha, ou represar um córrego, era importante apaziguar o espírito protetor encarregado daquela determinada situação, e mantê-lo aplacado. Destruindo o animismo pagão, o cristianismo permitiu a exploração da natureza com total indiferença aos sentimentos em relação à mesma. Muitas vezes se diz que a Igreja substituiu o animismo pelo culto aos santos. É verdade, mas o culto aos santos é funcionalmente muito diferente do animismo. O santo não está nos objetos naturais; ele tem sua cidadania no céu. Além disso, um santo é inteiramente humano; ele pode ser definido em termos humanos. Os espíritos nos objetos naturais, que outrora protegiam a natureza do homem, evaporaram-se. O monopólio eficaz do homem sobre o espírito neste mundo foi confirmado, e as antigas inibições à exploração da natureza, esmigalhada.

Uma visão cristã alternativa

Poderia parecer que nos encaminhamos em direção a conclusões desagradáveis a muitos cristãos. Dado que tanto a ciência como a tecnologia são palavras benditas no nosso vocabulário contemporâneo, alguns podem estar felizes com as noções, primeiro, que desde uma perspectiva histórica, a ciência moderna é uma extrapolação da teologia natural, e, em segundo lugar, que a tecnologia moderna pode ser pelo menos em parte explicada como uma realização do dogma Ocidental-cristão voluntarista sobre a transcendência do homem sobre a natureza e de seu legítimo domínio sobre ela. Mas, como reconhecemos agora, há mais de um século ciência e tecnologia - atividades até então bastante separadas – se uniram para dar à humanidade poderes que, a julgar pelos muitos de seus efeitos ecológicos, estão fora de controle. Nesse caso, o cristianismo carrega uma enorme carga de culpa.

Pessoalmente duvido que o desastroso impacto ecológico possa ser evitado simplesmente aplicando-se aos nossos problemas mais ciência e mais tecnologia. Nossa ciência e tecnologia nasceram de atitudes cristãs baseadas na relação do homem com a natureza, reconhecidas, quase que universalmente, não só pelos Cristãos e Neo-cristãos, mas também por aqueles que afetuosamente se consideram a si mesmos pós-cristãos. Apesar de Copérnico, todo o cosmo gira em volta do nosso pequeno planeta. Apesar de -Darwin, em nossos corações não nos sentimos parte do processo natural. Somos superiores à natureza, a desprezamos e estamos dispostos a usá-la de acordo com nossos caprichos. O recentemente eleito Governador da Califórnia, crente como eu mas menos preocupado que eu, deu prova de sua tradição cristã quando disse (segundo se afirma): «quando você viu uma árvore de pinho, você viu todas elas». Uma árvore, para um cristão, não passa de um artefato físico. O conceito sagrado da floresta é completamente estranho ao cristianismo e ao ethos Ocidental. Por quase dois milênios os missionários cristãos incentivaram o corte das florestas sagradas porque as consideravam objetos idolátricos, que assumem o espírito da natureza.

Nosso comportamento ecológico depende de nossas ideias da relação homem-natureza. Nem mais ciência e nem mais tecnologia vão nos livrar da atual crise ecológica até que encontremos uma nova religião, ou reconsideremos nossos antigos valores religiosos.

A atual e crescente degradação do ambiente global é produto de uma tecnologia e ciência dinâmica que se originaram no mundo medieval Ocidental, ao qual São Francisco se rebelou de um modo tão original. Seu desenvolvimento não pode ser historicamente compreendido sem considerar uma série de atitudes tomadas em relação à natureza que estão profundamente arraigadas nos dogmas cristãos. O fato de que a maior parte das pessoas não pense nessas atitudes como cristão é desastroso. Nenhum novo sistema de valores básicos foi aceito na nossa sociedade para substituir o cristão. Portanto, a crise ecológica continuará piorando se não rejeitarmos o axioma cristão de que a natureza não tem outra razão de ser do que a de servir ao homem.

O maior revolucionário espiritual da história Ocidental, São Francisco, propôs o que a seu juízo era uma visão cristã alternativa da relação homem-natureza; ele tentou substituir a ideia da autoridade humana sem limites sobre a criação pela ideia da igualdade entre todas as criaturas, até o homem. Ele fracassou. Tanto nossa atual ciência como a tecnologia estão tão manchadas com a arrogância e ortodoxia cristã em relação à natureza que não podemos esperar nenhuma solução de nossa crise ecológica vindo delas mesmas. Se as raízes da nossa preocupação ecológica são basicamente religiosas, o remédio também deve ser essencialmente religioso, queiramos ou não. Devemos reconsiderar e repensar nossa natureza e nosso destino.

 

Lynn White Jr

1907-1987, Estados Unidos