REFLEXÕES SOBRE O CASO DE JULIAN ASSANGE
Teresa Forcades i Vila
A tecnologia 4.0 é uma oportunidade, mas as elites perseguem aqueles que põem seu poder em perigo
Era 29 de agosto de 2017 e eu não estava preparada para o que encontrei. O belo edifício inglês, que eu tinha visto muitas vezes nos jornais e na televisão, estava à minha frente, mas a Embaixada do Equador não era como eu pensava. O porteiro apontou para uma pequena porta à esquerda da escada principal. Um funcionário abriu a porta bastante furtivamente, pegou meu passaporte rapidamente e fechou a porta novamente, deixando-me do lado de fora, com um olhar perplexo, ao lado do porteiro.
Comecei a me sentir angustiada. A embaixada se resumia em apenas alguns quartos bem pequenos, a julgar pelos dois onde finalmente consegui entrar. O engenhoso e dinâmico Julian Assange estava muito pálido e parecia deprimido. Fazia muito calor. “Sinto muito, mas não é possível abrir as janelas. Não muito tempo atrás, um homem escalou a parede com a intenção de me matar. Ele foi detido quando já estava praticamente dentro da casa. Não foi a primeira tentativa”. Eu me senti ainda mais angustiada. A conversa durou mais de uma hora.
A princípio, eu havia solicitado em nome de uma equipe de jovens cineastas espanhóis, interessados em entrevistar Julian Assange. Assange se recusou a fazer uma entrevista formal, mas pediu para ter uma conversa particular comigo. De 25 a 27 de agosto, eu havia participado como oradora no Greenbelt Festival, um festival cristão anual de arte, fé e justiça, realizado na Inglaterra desde 1974. É o festival de música mais antigo da Inglaterra. Naquele ano de 2017 reuniu mais de dez mil participantes. Passei alguns dias em um ambiente barulhento e alegre cercado por cristãos anglicanos bem intencionados, comprometidos com a justiça social. Em contraste com o ambiente do festival, a atmosfera na pequena embaixada e o modo contido com que Assange falava e se movia me deixavam ainda mais angustiada. Fiquei impressionada com a combinação de tristeza e lucidez de Assange e a sua capacidade de autocrítica: "Eu acreditava que revelar a informação vital, que estava sendo ocultada, ajudaria a tornar o mundo um lugar mais livre e seguro. Mas o contrário aconteceu”. Cito de memória, porque não me lembro de suas palavras literais, mas lembro-me vividamente do efeito que elas tiveram em mim. Eu não esperava uma atitude tão sóbria e modesta, e fiquei comovida. Mostrar mais
Assange explicou que o fato de não ter havido uma rejeição massiça e efetiva à vigilância ilegal e outros crimes perpetrados pelos governos e pelas grandes empresas e denunciados por WikiLeaks, tem servido a efeitos práticos como sua legitimidade. Antes do WikiLeaks, nós, os cidadãos das democracias ocidentais estabelecidas, poderíamos fingir ignorância. Graças ao WikiLeaks, agora todos sabemos, sem sombra de dúvida, que pessoas inocentes são regularmente alvos de ações militares com padrões éticos deficientes, que são dirigidos por oficiais supervisionados por nossos governantes; sabemos que nossos governos democraticamente eleitos e suas principais agências, especialmente a CIA dos EUA, violam sistematicamente suas próprias leis, não apenas no âmbito internacional, mas também no nacional.
O escândalo deveria ter sido enorme. Nisso confiava Assange. Mas não foi assim. Em vez da indignação e ação coletiva decisiva esperada, a resposta aos vazamentos foi apatia e resignação generalizadas. Impotência disfarçada de prudência. Era quase como se as revelações do WikiLeaks tivessem fornecido aos responsáveis pelos crimes, a confirmação provavelmente surpreendente de que uma maioria generosa aprova o que eles fazem, independentemente do grau de violência que se requeira. De onde vem essa resignação, essa conivência? Esperamos secretamente que os crimes do nosso governo e das grandes empresas nos favoreçam? Talvez pensemos que sem as ações criminosas de nosso governo, nossa situação social seria muito pior? Antes, os governos supostamente nos defendiam da ameaça do comunismo soviético ou chinês; hoje, do fundamentalismo islâmico.
Aceitamos o corte de liberdades em nome da segurança.
Para tornar o mundo um lugar mais livre e seguro. Não deveria ser essa a primeira prioridade do governo em um mundo que viveu os horrores de duas guerras mundiais há menos de 100 anos? Até agora, o Papa Francisco parece ser o único líder mundial que fala abertamente da terceira guerra mundial, não como um possível pesadelo em um futuro próximo, mas como uma realidade já existente. Francisco falou sobre isso pela primeira vez em 2014 e repete com mais frequência desde 2016: eles chamam isso de insegurança global, mas a palavra real é guerra. Hoje há mais conflitos armados abertos, mais refugiados (60 milhões em todo o mundo), mais comércio de armas, mais violência militar e mais militarização nas sociedades civis, do que durante a primeira e segunda guerras mundiais. Com uma diferença crucial. Durante a primeira e segunda guerra mundial, a visão de um futuro melhor inspirou e encorajou os oficiais militares e a maioria dos combatentes de ambos os lados.
Hoje, no entanto, a principal motivação para fazer a guerra parece ser o interesse privado ou a vontade de evitar um mal pior, se não a mera sobrevivência. Neste terceiro milênio, os únicos que ainda ousam defender uma visão utópica, sua versão particular de um futuro melhor, parecem ser, paradoxalmente, os grupos terroristas que, em nome de um Islã ideologizado, estão dispostos a matarem de maneira maciça e indiscriminada. Os chamados terroristas globais estão dispostos a matar inocentes e restringir a liberdade das pessoas de uma forma que - apesar das revelações do WikiLeaks, que deveriam ter aberto nossos olhos -, a maioria dos ocidentais ainda acredita que nossos próprios governos democratas nunca se atreverão a tentar. O fato é que são precisamente nossos governos que sistematicamente promovem o terror nos países menos favorecidos.
WikiLeaks nos ajudou a perceber quantas decisões são tomadas diariamente, que vão contra os padrões de justiça e respeito pela dignidade, liberdade e vida dos seres humanos que as democracias ocidentais estabelecidas oficialmente defendem. Na América Latina, nos países árabes, na Europa, nos EUA... nos últimos anos houve movimentos populares pacíficos e utópicos (a Revolução Bolivariana, a Primavera Árabe, o Occupy Wall Street, o movimento dos indignados...) dispostos a enfrentarem esses poderes falsamente democráticos e suas mentiras. Eles testemunham que a capacidade de resistência popular ainda permanece.
No momento em que escrevo estas linhas, Assange está nas mãos da polícia britânica, que entrou com a permissão do governo do Equador na Embaixada que lhe havia oferecido refúgio e o prendeu. Os Estados Unidos exigem sua extradição. Se Assange tivesse atacado um político ou uma companhia isolada, talvez tivesse sido mais fácil para o público em geral levar a sério suas revelações e forçar as autoridades a levarem os responsáveis à justiça. WikiLeaks não se concentrou em apenas um indivíduo ou um pequeno grupo; revelou uma corrupção criminosa generalizada existente nos mais altos níveis de governo e poder. Onde estão as autoridades dispostas a exigirem responsabilidades pelas denúncias do WikiLeaks? Onde encontrar uma instância de poder, que não tenha sido acusada de vazamentos e possa exigir uma prestação de contas?
Em vez disso, achamos que a opinião pública está se voltando contra os profetas como Assange que, arriscando seu futuro, sua própria liberdade e até mesmo sua própria vida, ousaram denunciar que o imperador está nu e, revelaram concretamente a corrupção do poder. Em vez disso, descobrimos que a reação geral é o desprezo da democracia e dos valores ocidentais da liberdade individual.
Hoje vemos uma virada política generalizada em direção ao autoritarismo, que causa a proliferação de grupos da extrema direita. Temos que analisar em profundidade a razão desse fenômeno e o que pode ser feito para continuar trabalhando de forma construtiva para um futuro mais livre e seguro.
Enquanto isso, organizando-nos no mundo todo, não apenas para evitar a extradição de Assange, mas para obter sua absolvição e libertação, estaremos defendendo não apenas sua dignidade e sua liberdade, mas também as nossas.