Religião: a ambivalência do sentido

Religião: a ambivalência do sentido

Pedro A. Ribeiro de Oliveira
Juiz de Fora
 


A história da humanidade mostra com frequência a religião colocada a serviço dos poderosos, mas também pode ser encontrada em muitas lutas de libertação. Por vezes, a mesma religião encontra-se nos dois lados do conflito: uma parte apoia a metrópole colonial e outra, os movimentos nacionais; em nome do mesmo Deus se abençoa o capital e se dá força à luta operária; a mesma Bíblia legitima a ditadura e a resistência popular... Vejamos o que a sociologia pode dizer sobre isso.

1. Religião como linguagem

Por ser um conjunto de ritos e crenças, a religião é a linguagem que faz a comunicação entre o humano e o sobrenatural. Como toda linguagem, ela é ao mesmo tempo um meio de comunicação e de pensamento. O interesse da sociologia pelo estudo da religião reside justamente no fato de ela ser um sistema de pensamento capaz de atribuir sentido a tudo que existe ou venha a existir. Para a religião, tudo se inscreve na misteriosa ordem cósmica que só ela é capaz de decifrar. Como dizem os casais enamorados, “o nosso amor estava escrito nas estrelas”. Decifrar o sentido da existência – “quem sou, de onde vim, para onde vou” – é o campo próprio da linguagem religiosa.

Para elaborar suas narrativas de sentido, a religião recorre a categorias que lhe são peculiares: sagrado e profano, material e espiritual, eterno e temporal, o que é do céu e o que é da terra, bênção e maldição, e outros pares similares. Elas são como os alicerces das narrativas que darão sentido à experiência vivida. A força da narrativa plausível e convincente – isto é, recebida como verdadeira – está na sua capacidade de guiar os comportamentos e de definir o bem e o mal, a verdade e o erro. Ela pode levar pessoas a darem a própria vida em testemunho ou, no sentido inverso, a matarem quem se opuser à sua verdade. Mas – aqui reside sua fraqueza – a religião só tem força na medida em que sua narrativa de sentido é acatada. Daí a necessidade de reinventar as narrativas para responder às formas de existência em constante mudança. Religião que só faz repetir as antigas narrativas perde a credibilidade, torna-se incapaz de influenciar pessoas e acaba cedendo o lugar para outra religião mais adequada à realidade do momento.

Mas o sentido para a existência está longe de ser uma necessidade apenas psicológica. Ao perguntar-se “Quem sou? De onde vim? Para onde vou?”, a pessoa não busca apenas uma resposta individual, mas um sentido para sua existência enquanto parte de uma sociedade. E aí reside a importância sociológica da religião: na medida em que a narrativa de sentido aplica-se a atributos determinados pela condição social – como riqueza, poder e prestígio –, esses atributos passam a ser considerados como resultantes de um desígnio divino que deve ser aceito com resignação. Neste sentido, a religião é uma força estruturante da sociedade: aplicada às relações sociais, ela transforma o assim é em assim deve ser, ou em assim não pode ser.

Na medida em que as narrativas religiosas se difundem entre os membros de uma dada sociedade, elas moldam seu comportamento por meio de hábitos adequados à manutenção da ordem estabelecida. Ao fazer isso, a religião exerce a função social e política de legitimar, pelo efeito de consagração, as relações de poder entre grupos, gêneros, classes ou etnias. A história de Nossa América está cheia de exemplos de como a religião serviu para manter a ordem estabelecida pelos colonizadores: quem se opusesse às instituições e à ordem vigente estaria contra a vontade de Deus – interpretada pela hierarquia da Igreja, é claro.

2. Trabalho religioso

Engana-se, porém, quem vê apenas esse lado da religião e não percebe que ela – como toda realidade histórica – tem outro lado. A religião não é um reflexo automático, mais ou menos mistificado, das estruturas sociais ou dos interesses econômicos de um grupo, como afirma o materialismo vulgar, e, sim, o resultado de um trabalho religioso. Esse conceito, elaborado por Pierre Bourdieu, em 1971, abre nossos olhos para a complexidade da religião sob o ponto de vista sociológico. Sempre que alguém, ao realizar um ritual ou expressar uma crença, atribui um sentido sagrado a alguma coisa ou evento e isso se torna um ritual ou uma crença de um grupo, por pequeno que seja, essa pessoa realiza um trabalho religioso.

A religião deve ser sociologicamente entendida como o resultado de um trabalho religioso que se reproduz ao longo do tempo. Convém notar que isso não nega a possibilidade de que o trabalho religioso – que é essencialmente humano – possa ser fruto de uma revelação ou inspiração divina, mas aí já deixaríamos o campo da sociologia para entrar no objeto de fé. Jesus de Nazaré, por exemplo, realizou um trabalho religioso ao proclamar que o Reino de Deus já estava se realizando na história humana. Seus seguidores, ao reproduzirem esse anúncio, também realizam um trabalho religioso. Outros profetas e sacerdotes, ao ensinarem outras doutrinas, também fazem um trabalho religioso. E não cabe à sociologia dizer qual deles resulta de inspiração divina ou qual é o mais verdadeiro.

Por ser a narrativa de sentido fruto de um trabalho religioso, ela é condicionada pelo lugar social de seu produtor. Não dá no mesmo anunciar o Reino de Deus vivendo entre camponeses e artesãos da Galileia, ou sendo sacerdote no templo de Jerusalém. Ou, tomando um exemplo de hoje, duas religiosas da mesma congregação provavelmente anunciarão o evangelho de modo bem diferente se uma delas mora em um bairro pobre e a outra em um colégio que atende jovens de classes abastadas. Esse condicionamento não pode ser visto como determinista, mas tampouco pode ser subestimado: todo trabalho religioso é condicionado pelo meio social onde se realiza.

3. A religião diante de interesses conflitantes

Em qualquer sociedade há interesses em conflito, porque nem tudo que é bom para uma parte o é para outras. Por isso, um grupo, ao tornar-se dominante, precisa convencer os outros de que seu interesse coincide com o interesse geral: o colonizador apresenta-se como aquele que vem civilizar os povos atrasados; o grande proprietário diz que oferece emprego a quem não tem onde trabalhar; o homem justifica seu poder mostrando-se como protetor da mulher que ele mesmo fragiliza... A estratégia é fazer o lado dominado acreditar que a ordem estabelecida é boa também para ela, para que não se revolte.

Nessa estratégia, a religião pode ser muito útil ao lado dominante. Afinal, os ricos não se contentam em ser ricos; eles querem se sentir merecedores de sua riqueza. Querem que a religião lhes assegure que são ricos porque foram abençoados por Deus, porque seus pais praticaram o bem, ou porque foram escolhidos por Deus para governar o resto do mundo. Querem também que a religião diga aos pobres que eles serão recompensados por seus sofrimentos terrenos, desde que não se rebelem. Quem faz esse tipo de trabalho religioso e produz uma narrativa de sentido convincente recebe todos os favores dos dominantes: prestígio, honrarias, gordos donativos e tudo de que precisarem para uma vida sem preocupações financeiras.

Já para o lado dominado tudo é bem diferente, porque o interesse de quem sofre opressão é, em primeiro lugar, libertar-se dela. A narrativa religiosa que lhe agrada é aquela que fundamenta sua esperança de libertação. Mas quem fará esse tipo de trabalho religioso? Diferentemente dos dominantes, os dominados não têm recursos financeiros para sustentar quem elabore essa narrativa de modo sistemático, refinado, com fundamentação erudita. Em geral, a parte dominada só pode contar com os próprios membros do seu grupo ou com pessoas que, embora oriundas dos grupos dominantes, fazem a opção pelos pobres como uma opção de classe social, isto é, colocam-se a serviço deles. Por isso, as narrativas de sentido do lado dominado em geral surgem na forma de autoprodução religiosa: pessoas sem formação teórica especializada, mas de grande sensibilidade para a vida ameaçada, tecem narrativas de sentido verdadeiramente revolucionárias, porque deslegitimam a ordem estabelecida, desmistificam sua sacralidade e apontam sua hipocrisia. Quando essas narrativas populares encontram o apoio teórico de intelectuais que se convertem à causa dos dominados, elas aumentam tanto a sua força social que se tornam capazes de mudar as próprias estruturas sociais de dominação.

Esse potencial revolucionário da narrativa religiosa elaborada a partir do lado socialmente dominado causa temor aos dominantes, que tudo fazem para silenciá-la. A folclorização das religiões populares e o desprezo pelas religiões indígenas e afro, bem como a perseguição às teologias da libertação e do diálogo inter-religioso, são a face religiosa de um conflito social que tem no fundo interesses de classes em oposição.

Concluindo, a sociologia nos ajuda a perceber onde reside o fator que coloca a narrativa de sentido da religião a favor de quem domina ou a favor de quem busca a libertação: é a posição social de quem realiza esse trabalho religioso. A mesma linguagem que legitima a dominação pode legitimar a rebelião − tudo depende de quem e como faz a narrativa. Mas a sociologia abstém-se de julgar quem faz a narrativa mais verdadeira, pois isso é revelado pela prática: “é pelos frutos que se conhece a árvore”.

 

Pedro A. Ribeiro de Oliveira

Juiz de Fora, MG, Brasil