Salvemos a Amazônia

Salvemos a Amazônia

Marina SILVA


Quando Dom Pedro Casaldáliga e José Maria Vigil pediram que contribuísse com um artigo sobre o tema «Salvemos a Amazônia», como parte da Agenda Latino-americana’2010, cujo tema geral será «Salvemos o Planeta», vi que a iniciativa não poderia ser mais pertinente. No momento em que trilhões de dólares são gastos para tentar deter o colapso do sistema financeiro global, faltam recursos e determinação política para deter o colapso do sistema climático global.

O propósito de salvar a Amazônia fala, no fundo, de filosofia de vida, do compromisso de repensar a humanidade e lhe dar a chance de ser mais humana. Pode parecer redundância, mas se analisarmos bem, a fonte primária dos graves problemas atuais é justamente a desumanização da humanidade e sua submissão à ditadura de um modelo insustentável de produção e consumo que não cessa de gerar injustiça social e desastres ambientais.

Proteger a Amazônia, assim, é uma escolha que vai além do objetivo ambiental em si. Simboliza um engajamento no campo dos valores éticos, da responsabilidade intergeracional, do respeito à diversidade cultural, da mudança de paradigmas políticos e institucionais. E isso não é teoria, é história feita com o exemplo de Chico Mendes, Wilson Pinheiro, Dorothy Stang e tantas outras lideranças que, ao longo do tempo, foram transformando a Amazônia numa concretude viva, onde o humano e o ambiental são uma unidade que gera sentido e aponta soluções.

Existem muitas outras razões para proteger a Amazônia. Estão aí as evidências científicas de que sua destruição terá custo altíssimo, não só para os países que a compartilham, mas para todo o planeta, a começar pelos impactos na regulação do clima.

E mesmo assim persistem concepções atrasadas que veem nos excepcionais recursos naturais da região apenas o insumo para ganhos imediatistas ou o campo de provas de projetos de desenvolvimento de inspiração predadora. Ideias como a de uma Amazônia vazia, homogênea, eldorado de riquezas, escudam-se no fantasma da internacionalização, brandido de forma simplista para justificar privilégios e estratégias de substituição da floresta por atividades agropecuárias e outras, ao arrepio de qualquer controle.

Desde o período da ditadura militar, temos colecionado projetos inadequados para a região. Incapazes de responder ao desafio de promover inclusão social com respeito ao meio ambiente, fomentam situações propícias a conflitos sociais, violência, desconstituição de culturas milenares, destruição de 18% da floresta, com perdas monumentais de biodiversidade e graves impactos sobre os serviços ecológicos que a Amazônia presta ao Brasil e ao planeta.

Apesar de ocupar cinco milhões de quilômetros quadrados, 60% do território nacional, os indicadores sociais da Amazônia Legal são precários. Em 2006, 31,73% dos trabalhadores em todo o país tinham carteira de trabalho assinada. Na Amazônia, apenas 18,35%.

Essa triste realidade, percebida por um número cada vez maior de brasileiros, não tem sido suficiente para mudar a lógica das forças econômicas e políticas dominantes na região. Ao invés de desenvolver modelo baseado na valorização da floresta, no saber tradicional e na modernização científica e tecnológica, insiste-se em crescer para poucos e à custa de mais desmatamento.

Mesmo caducas, falsas verdades que lastreiam o modelo predatório se enraizaram por décadas e continuam influenciando muitas pessoas, impedindo que se estabeleça um ambiente plural, democrático e de livre acesso ao conhecimento, à informação e às oportunidades econômicas sustentáveis para a população de mais de 25 milhões de habitantes.

Ainda há quem veja na Amazônia apenas uma reserva de espaço para onde empurrar as tensões fundiárias do sul e do sudeste.

Sabe-se hoje que a verdadeira riqueza da Amazônia reside naquilo que era desprezado por essa velha visão, ou seja, está na existência da floresta, com sua biodiversidade, seus serviços ambientais, sua diversidade de culturas e a tecnologia das comunidades tradicionais para o uso dos recursos naturais.

A população amazônica tem direito legítimo a se desenvolver, mas há um caminho virtuoso para isso e inúmeras experiências, em todos os estados da região, apontam o caminho das atividades sustentáveis, ou seja, que convivam com a existência da floresta e se nutram desse diferencial.

Costumo dizer que o Brasil só será potência global como potência socioambiental. E, para isso, a Amazônia é seu principal trunfo. Reunimos quase 12% de toda a vida natural do planeta. Concentramos 55 mil espécies de plantas superiores (22% das existentes); 524 espécies de mamíferos; de 3 a 9 mil espécies de peixes de água doce; de 10 e 15 milhões de espécies de insetos; 1.800 espécies de borboletas (24% do total mundial) e mais de 70 espécies de psitacídeos: araras, papagaios e periquitos.

A Amazônia é a maior reserva de diversidade biológica do mundo, e também o maior bioma brasileiro em extensão. A bacia amazônica abriga, numa área de aproximadamente 6,5 milhões de quilômetros quadrados, a maior rede hidrográfica, que escoa cerca de 20% do volume de água doce do mundo. E 60% dessa bacia está no Brasil, onde o bioma Amazônia ocupa a totalidade de cinco estados (Acre, Amapá, Amazonas, Pará e Roraima), grande parte de Rondônia (98,8%), mais da metade de Mato Grosso (54%), além de parte do Maranhão (34%) e Tocantins (9%). Esses números deveriam aumentar nossa responsabilidade perante os demais países com os quais compartilhamos esse fantástico patrimônio natural, de modo a integrar os esforços de desenvolvimento sustentável.

E, no entanto, a economia da região, no que nos cabe, ainda é baseada em grande parte na exaustão dos recursos naturais, criando curtos períodos de prosperidade, seguidos de caos social, pobreza, degradação ambiental, desemprego.

Até 2003, cerca de 44% das terras da Amazônia brasileira eram devolutas ou sem titulação definida. Após a criação do Plano de Prevenção e Controle do Desmatamento da Amazônia, esse total caiu para 29%, com a criação de 65 milhões de hectares de áreas protegidas federais e estaduais e de terras indígenas. A área de reservas extrativistas foi duplicada, passando de 5 para 10 milhões de hectares, dando segurança jurídica para mais de 20 mil famílias de extrativistas da região.

Quando estava à frente do Ministério do Meio Ambiente, durante a execução desse plano, conseguimos reduzir o desmatamento da Amazônia em quase 60%, de 2004 a 2007, mas com muita resistência política interna e externa ao governo. Enfrentamos quadrilhas há décadas entranhadas no serviço público e articuladas com grileiros e madeireiros e pecuaristas ilegais. Só do IBAMA foram presos 125 funcionários. No total foram mais de 600 pessoas, em 21 operações da Polícia Federal. Apreendemos 1 milhão de m3 de madeira, o que dá uma fila de carretas de 500 km. Aplicamos mais de R$ 4 bilhões em multas, restringimos o crédito na Amazônia para quem não respeita a legislação ambiental e criamos normas que criminalizam toda a cadeia produtiva ilegal.

Ainda há muito a ser feito. É impossível proteger a Amazônia sem profunda mudança no modelo de desenvolvimento da região, o que requer mudança radical na lógica dos incentivos, das políticas e das prioridades. É fundamental que, na base das políticas públicas, esteja a participação da sociedade local, envolvendo comunidades, movimentos sociais, academia, setores econômicos de vanguarda, na busca de uma dinâmica estruturalmente sustentável.

Preocupa-me, porém, constatar que as últimas iniciativas do governo para a Amazônia distanciam-se dessa visão. A Medida Provisória 458, por exemplo, enviada em março ao Congresso, acaba por facilitar a continuidade da grilagem de terras na região.

Além disso, avolumam-se as pressões para mudar o Código Florestal, de modo a ampliar o direito de desmatar, permitindo-se, por exemplo, que novas monoculturas exerçam pressão descontrolada sobre a floresta, como é o caso do dendê e da cana-de-açúcar. Isto sem falar das iniciativas para reduzir, no processo de licenciamento ambiental, as salvaguardas que minimizam o impacto socioambiental das obras de infraestrutura.

Estamos, nesse limiar do século 21, num momento extremamente delicado para o destino da Amazônia, o que significa falar também do nosso destino como país e do destino da humanidade. O fiel da balança será, não tenho dúvidas, a parte majoritária da sociedade brasileira que, com sua coragem e indignação, já promoveu inflexões históricas nos rumos nacionais. Dessa força difusa virá a sustentação política para que o movimento pendular entre avanço e retrocesso possa, enfim, parar no pólo correto, que é aquele que sustenta e preserva a vida, como diz Leonardo Boff.

 

Senadora Marina SILVA

São Paulo, SP,Brasi