Segmentos que nos arruínam
Segmentos que nos arruínam
Análise elaborada por estudantes, sobre os condicionamentos sociais da desigualdade econômica
Martín Valmasedar
O professor de Ciências Sociais chegou ao primeiro dia de aula com poucos papeis na pasta. Aproximou-se do quadro e escreveu: PROGRESSO, CAPITAL, IGUALDADE. Voltou-se e perguntou aos estudantes: Como os veem? Sobre isto temos que trabalhar esses três meses.
Pois – falou uma das estudantes mais atiradas – os vejo crus. Se há progresso e falta capital para isto, não chega a haver muita igualdade. Se há igualdade, não vejo como se pode repartir o capital. E se há capital, para quem será o progresso?
Antes que brotasse a discussão, o educador fez uma pequena introdução, propondo-lhes o ponto de partida: Vocês vivem em um país onde se supõe que todos os seus habitantes tentam progredir na economia, pessoal e coletivamente. E não só na economia. Vivem em um mundo onde, segundo parecem prever as estatísticas, a porcentagem de acumulação da riqueza por parte do 1% mais rico da humanidade, no ano de 2016 vai alcançar 50% da riqueza mundial. A pergunta é: quais são os fatores sociais na população que condicionam e facilitam a acumulação de riqueza para uns poucos? Teríamos que começar fazendo a lista desses fatores.
O professor esclareceu a questão. Logo os organizou em grupos e começaram a trabalhar.
A partir das discussões, consultando os conteúdos do livro de Ciências Sociais e dialogando sobre suas experiências, repassaram as atitudes de resignação e indignação na sociedade que eles conhecem, e as técnicas do poder que lida com os segmentos dos cidadãos, convertidos muitas vezes em marionetes dos poderes políticos e econômicos que acumulam a propriedade.
Meia hora depois, surgiram seis palavras, produto das animadas discussões, dentro das atitudes pessoais e sociais, terreno de cultivo dessa desigualdade econômica:
RESIGNAÇÃO + RELIGIÃO + MEDO + EDUCAÇÃO + CONSUMISMO + COMPETIÇÃO.
O professor se permitiu adicionar com gesto irônico um fator: O QUE ME IMPORTA?
Esse foi o trabalho dos rapazes e moças durante os três meses seguintes. Aqui deixamos transparecer características da pesquisa em equipe.
Tratava-se de analisar as atitudes mentais que provocam e/ou permitem as desigualdades econômicas na sociedade, a enorme diferença entre uns poucos muito ricos e as massas de pobres no mundo. Eis o resumo dos trabalhos:
RESIGNAÇÃO: (refere-se à atitude de povos ou sociedades que, devido à falta de cultura e de consciência, não são capazes de reagir diante de uma economia causadora de diferenças injustas).
Os estudantes começaram colocando em comum situações do país que mantêm o povo na pobreza e a falta de reação popular diante dessa realidade. Comprometeram-se a fazer entrevistas com parentes e conhecidos em situação de pobreza e compor um pequeno dicionário de frases que escutaram nesses ambientes: “Nascemos pobres, morreremos pobres”... “Assim é a vida”... “Quem pode, pode”... “Cada um tem seu destino” .
Logo debateram as causas dessas atitudes. Alguns visitaram bairros de periferia onde havia gente em situação de subdesenvolvimento. Perguntaram-se: como as pessoas de nossos bairros enfrentam as desigualdades econômicas? Quais atitudes manifestam: decepcionados, lutadores, indiferentes, otimistas, violentos?
Deduziram que a atitude de resignação é consequência de anos no processo histórico da desigualdade. Paulo Freire a chamava de “consciência ingênua”: “Somos pobres pelo destino, e diante disso não se pode fazer nada”.
RELIGIÃO: (refere-se a uma visão religiosa desencarnada que domina em algumas sociedades e lhes paralisa toda atitude reivindicatória).
O trabalho sobre o fator religião como elemento de empobrecimento criou um agudo debate entre os jovens. Apareceram três tendências: os que mantinham como dogma a expressão marxista “a religião é o ópio do povo”, os que defendiam que uma religiosidade séria anima o trabalho pelo progresso, e os que distinguiam entre religião e fé, afirmando que a fé tinha um poder libertador, enquanto a religião, muitas vezes, se inibe diante do que ocorre fora do templo, como produto de um fatalismo inspirado em motivações religiosas: “Somos pobres porque Deus quer assim”. O que Paulo Freire chamava de “consciência mítica”.
MEDO: (refere-se aos governos que impõem sobre os trabalhadores uma vigilância policial e aos ambientes de assaltos e extorsões que, sobretudo, caem sobre os pobres).
Nesta parte tiveram destaque um estudante filho de refugiados políticos e duas jovens estudantes vindas de zonas rurais, cujas famílias haviam perdido as terras, pressionadas por agentes (guardas privados) de empresas mineiras. O grupo analisou como as forças armadas nos países neoliberais dependiam dos poderes econômicos que as mantêm, e a cujo serviço estão. Filhos de líderes operários, estudantes do instituto, apoiaram essa análise, que explicava como se mantinham as diferenças pobreza-riqueza.
EDUCAÇÃO: (refere-se à educação escolar e aos meios de comunicação em mãos dos poderes econômicos).
Nesse ponto da análise houve uma divisão do conceito de educação: educação formal (a escolar) e a informal (os meios de comunicação). No primeiro, os jovens estudantes, para fazer as críticas, tinham a “desvantagem” de que o centro educativo onde estavam manifestava em geral uma linha de análise dialogal; o próprio estudo que estavam fazendo o demonstrava. O trabalho foi mais ativo ao abordar os meios de comunicação: recolhimento de materiais de imprensa, gravações de rádio, seleção de filmes. Em todos eles os estudantes analisaram os fatores que intervinham em favor do enriquecimento dos privilegiados, porque criavam nos ouvintes uma mentalidade conformista.
CONSUMISMO: (refere-se a uma mentalidade superficial, orientada a gastos desnecessários e às forças publicitárias e ambientais que cultivam os desejos).
Os jovens se dedicaram a analisar os objetos, viagens, construções e gastos de luxo que encontravam dominando o ambiente social. Os gastos inúteis que a publicidade induzia. Fizeram uma lista de tudo o que tinham em casa, sem o que podiam viver sem problemas.
Naturalmente, a divisão entre útil e inútil não é fácil, porém o trabalho ajudou a afinar o espírito de análise nos estudantes de classe média baixa.
COMPETIÇÃO: (refere-se à criação de atitudes sociais em que se cultiva o empenho de triunfar sobre coletivos e indivíduos vistos como opositores).
O tema está relacionado aos elementos educativos ou deseducativos que formam as pessoas para dominar, destacarem-se e se sobressaírem, alimentando o individualismo e deixando de lado a solidariedade, o progresso coletivo do país: neste tema se reforçava o enriquecimento com a busca de poder. O ser humano não está condicionado somente pelo desejo de posse de bens, mas pela criação de situações de domínio. Os jovens analisaram os motivos que inspiram os que se aferram ao poder como caminho para o enriquecimento.
INDIFERENÇA (O QUE ME IMPORTA?): (refere-se à tendência de pessoas aparentemente informadas, mas que cultivam uma atitude passiva e superficial diante das desigualdades econômicas e sociais).
A proposta do professor colocou em questão as atitudes, o desvio da atenção pessoal sobre elementos secundários, a eficácia do “esporte-espetáculo” para deixar de lado a política e a economia, assim como valores culturais e estéticos para os que, diante da sociedade, ficam somente nisso, em simples espectadores. Aqueles que, quando não se trata de futebol ou sensacionalismo, olham para outro lado.
Todos esses trabalhos duraram três meses. Acompanharam-nos entrevistas, diálogos e debates, análises de filmes e livros, e a redação de uns textos ao lado da edição de um vídeo: “QUE NO TE HALEN DE LOS HILOS”, que reforçou a análise e a tomada de consciência dos rapazes e moças. Surgiu neles a esperança de que na sociedade que pensam construir deixe de existir essa brutal diferença de riqueza e pobreza; que comecemos a mostrar outro mundo de igualdade. Hoje é utópico, porém possível. Pelo menos damos passos nessa direção.
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Ainda que as circunstâncias de sua realização tenham sido diferentes, o vídeo citado está disponível em Cauce: equipocauceguatemala.blogspot.com/p/nosotros.html. Acompanhado deste artigo, pode ser útil em escolas ou centros culturais, CEBs e/ou grupos de reflexão. O vídeo «Que no te halen de los hilos» está em: youtu.be/LYSBFzc5Bq0. Como DVD pode ser adquirido em Cauce: equipocauce@gmail.com, tel.: 502-22306363.
Martín Valmaseda
Cobán, Guatemala, martinvalma.blogspot.com