Seja você mesmo, você mesma

Seja você mesmo, você mesma

José Arregi


A você, irmã, irmão, quem quer que seja, onde quer que esteja, a você que sofre ainda por causa de sua identidade sexual, orientação ou gênero, pela cor que a Terra e a Vida deram a você ou que você escolheu, pelo que você é ou busca ser, você sem etiquetas: a ti PAZ e BEM.

Seu desafio é grande, pelo peso do passado e do presente, pelo terrível estigma de milênios de cultura machista, de negação da cultura, de desprezo do outro, de maltrato à vida, de simples ignorância... Pelo poder das instituições religiosas, pelo enraizamento dos preconceitos, pelo alcance do dano que infligiram a você. Porém, a Ruah da Vida habita em você, sua brisa vital lhe bendiz. Nada poderá contra ela, nem contra você. Basta que você se abra a seu alento, que é seu próprio alento.

Despoja do peso da culpa, tão injusta e asfixiante, que lhe imputaram, às vezes abertamente, às vezes sutilmente, com declarações de misericórdia. Não deixe dominar pelo ressentimento, tão compreensível, mas tão pernicioso. Você tem o sagrado direito e o santo dever de ser e de querer ser como é, de sentir como sente e de amar como ama. Atreva sem hipocrisia, nem amargura. Encara o desafio com humildade e audácia, com mansidão e determinação, com paz e firmeza. Seu corpo, seu amor, seu eros, seu gênero, são sacramento de Deus ou da Vida.

Perdoa. Peço-lhe perdão por todos os regimes que humilharam e castigaram, encarceraram e até queimaram vivas, pessoas de gênero e orientação, apenas por serem diferentes da norma geral, seja biológica, cultural ou religiosa; por serem simplesmente como a vida os fez. Peço-lhe perdão, sobretudo, pela instituição eclesial católica que, adulterando o nome de Jesus, afirma que enquanto pessoa você deve ser acolhido/a com misericórdia, porém continua ensinando que seu gênero e sua orientação são um erro da natureza ou um “desvio neurótico”, e sua conduta sexual uma “grave depravação”, como escreve um bispo espanhol que se gaba de haver “curado” a mais de um homossexual. Não sabem o que dizem.

Peço-lhe perdão, porque o bom Papa Francisco, que tão evangélica e franciscanamente insiste em que a missão da Igreja Católica não é ensinar verdades nem impor normas morais, mas anunciar e encarnar a compaixão samaritana para todos os excluídos da Terra, no entanto, continua ensinando ainda que a “ideologia de gênero” é uma “maldade”, uma teoria que “esvazia o fundamento antropológico da família”, uma arma “para destruir o matrimônio”. Não é seu estilo; não o leve em conta.

A Igreja não deve compreensão e misericórdia a você, mas reconhecimento: reconhecimento de que é tão bom quanto ser ruivo em um país de negros. Não poderá lhe reconhecer – é problema dele, não seu – enquanto não saiba distinguir o sexo biológico (nem sempre definido), a identidade sexual (como percebo minha sexualidade corporal), a identidade de gênero (como me sinto: homem ou mulher e em que grau) e a orientação sexual (qual sexo me atrai). Contra as indicações que um famoso ônibus ultracatólico exibiu em 2017 em algumas cidades espanholas, há os que nascem com pênis, porém não são verdadeiramente meninos e, há as que nascem com órgão genital feminino, mas não são decididamente meninas. E há aqueles que são biologicamente meninos, porém se sentem psicológica e culturalmente “meninas, e as que são biologicamente meninas, porém se sentem meninos”. Às vezes, um gênero que não cabe em nossos esquemas binários.

A biologia, a psicologia e a cultura fizeram você como você é, como a todos e todas. Como alguns eclesiásticos continuam qualificando seu ser como “antinatural”, se a psicologia e a cultura, como a biologia, fazem parte da grande natureza que somos? A natureza não é um mecanismo de códigos fechados, como o Direito Canônico. De modo que nada há mais antinatural – e anti-divino – do que as ideias e as normas fechadas, sobretudo quando são justificadas em nome de Deus ou da Vida. O natural e o divino é acolher e cuidar de cada criança, jovem ou adulto tal como é, para o que queira e possa ser realmente o que é.

Um dia, a Igreja pedirá perdão, a você ou a alguém como você. E apagará do Catecismo da Igreja Católica, como outras coisas, a absurda afirmação de que “os atos homossexuais são intrinsecamente desordenados”, e abandonará de uma vez por todas seu argumento preferido: que a Bíblia e a tradição “sempre” o ensinaram assim. É simplesmente falso, uma dupla falsidade.

Pesquisando em toda a Bíblia, encontramos apenas três versículos, que poderiam ser entendidos como condenação à homossexualidade. O primeiro em Levítico 18,22, onde lemos: “Não se deite com um homem, como se fosse com mulher: é uma abominação”. Não é estranho que mencione unicamente a homossexualidade masculina, traço típico de uma cultura patriarcal que teme acima de tudo, a perda da virilidade e se despreocupe por completo com a sexualidade feminina, homossexual ou heterossexual; não é, pois, a conduta homossexual o que se condena nesse texto, mas a perda da virilidade, perda que se daria igualmente na ausência de atos homossexuais, pela mera orientação.

O segundo texto é encontrado no Novo Testamento, na carta de Paulo aos Romanos 1,26-27, o único texto bíblico em que se faz menção ao lesbianismo: “Suas mulheres mudaram as relações naturais do sexo por usos antinaturais; e igualmente os homens, deixando a relação natural com a mulher, se abrasaram em desejos de uns por outros”. O discurso de Paulo não se centra propriamente na sexualidade, mas na idolatria, porém, em qualquer caso, é verdade que repudia a homossexualidade, e o faz influenciado pela ética estoica e a ética de Jesus, que nunca falou sobre a questão.

Há um terceiro texto que, erroneamente, se costuma fazer referência como condenatório da homossexualidade: Gênesis 19,1-28 (paralelo em Juízes 19,22-30): alguns homens de Sodoma – de onde provém o termo “sodomia” – exigem de Lot que se entregue a alguns estrangeiros que ele hospedou em sua casa, e mantenha relações sexuais. Condena-se nessa passagem não a homossexualidade, mas a violação do sagrado dever de respeito aos hóspedes estrangeiros.

E isso está tudo na Bíblia. Porém, há que acrescentar aqui uma observação decisiva: suponhamos que, em vez de dois e meio, fossem dois mil, um por página, os textos bíblicos que condenassem a homossexualidade. Não deixariam de ser reflexo de uma mentalidade humana de milênios, sem valor para hoje, como tantas outras ideias e normas recolhidas na Bíblia. Amiga/o, se alguém te diz que o amor homossexual é imoral, porque a Bíblia o proíbe, responde que leia na Bíblia, por exemplo, o capítulo 11 do Levítico, que proíbe expressamente comer carne de camelo, coelho, lebre, porco, mariscos… Ou recorda-lhe que também o Novo Testamento ordena de forma contundente não comer nenhum tipo de embutidos (Atos 15,19-29). E coisas mais absurdas ainda. Paulo proíbe que o homem ore ou pregue com a cabeça coberta (acaso não vemos, no entanto, que os bispos pregam com a mitra?) e manda, pelo contrário, que a mulher ore ou pregue (sim, que pregue) com a cabeça coberta (1Cor 11,2-16). Segundo a carta a Timóteo, estar casado e ser bom marido é condição indispensável para ser eleito bispo (1Tim 3,2). Quanto aos demais, na mesma carta em que censura a conduta de gays e lésbicas, Paulo sustenta que devemos sempre nos submeter e obedecer a toda autoridade estabelecida, mesmo que seja ditatorial (Rom 13,1-6). Porém, a coisa é muito mais simples: o Espírito que inspira a vida e os textos, devem ser libertados das cadeias da letra, para a vida seguir. Jesus disse: “Está escrito... porém eu lhes digo”. O mesmo podemos e devemos fazer.

Os melhores discípulos e discípulas de Jesus se sentiram livres, não apenas para tolerar mas para bendizer a prática homossexual, sobretudo antes do século XIV. A quem lhe contradiga, recomenda que leia Cristianismo, tolerância social e homossexualidade, de J. Boswell. Sobretudo, saiba e sinta abençoada, abençoado por Deus ou pela Vida ou pela Criatividade sagrada. Não lhe abençoa a Vida “apesar” de ser o que você é, mas por ser isso. Bendiga sua vida por ser como você, por seu corpo como é – o corpo nunca mente – por sua orientação sexual, por sua identidade de gênero.

Irmã/o: o anjo da anunciação lhe diz como a Maria: Alegra-te de ser como és, cheio/a de graça, sacramento do amor. Seja você mesmo, você mesma.

 

José Arregi
San Sebastián, País Basco, Espanha