Sobre a Necessidade de um Segundo Iluminismo (ou Terceiro)

Sobre a Necessidade de um Segundo Iluminismo (ou Terceiro)

Grandes causas... além da superfície

Jorge Riechmann


Sob tantas lutas com as quais nos debatemos secularmente, há correntes subterrâneas que superam nossos tempos biológicos, nos quais se colocam em jogo a transformação da consciência, a reconstrução crítica de nossa cultura, a metamorfose cognitiva e espiritual de nossa espécie... Grandes Causas, lançadas em um nível subterrâneo, quase imperceptível, mas Causas pelas quais vale a pena dar a vida, se há olhos para vê-las e vocação para trabalhar.

A realidade, ou melhor, as realidades, estão cortadas por inumeráveis semelhanças e diferenças. Entre elas, as sociedades humanas, nas sucessivas etapas históricas, dão importância cultural (ou a negam) a diferentes conjuntos de semelhanças e diferenças. Diferenças sempre há para todos os gostos, mas umas são mais significativas e outras não. Ou seja: nem todas as diferenças (e semelhanças) são relevantes transculturalmente, nem trans-historicamente, apesar das ilusões que tenhamos a respeito. Pelo contrário, o que um conjunto de semelhanças e diferenças carrega de relevância cultural para uma sociedade em um momento concreto da história determinará em boa medida as pautas das construções sociais e psicológicas da realidade para essa sociedade.

Por exemplo, certos estudos psicológicos sobre as reações das pessoas que visitam zoos (em sociedades ocidentais contemporâneas) mostraram que as crianças tendem a ver semelhanças entre os seres humanos e os animais não humanos, enquanto os adultos veem diferenças. Meninos e meninas parecem sentir um parentesco espontâneo entre eles e os animais.

Pois bem: podemos entender, pelo menos, um aspecto daquele movimento cultural e social que foi o Iluminismo europeu dos séculos 17-18, como tentativa de atenuar, ou mesmo apagar, a importância concedida nas formações sociais europeias, anteriores a certas diferenças factuais ou culturais entre os seres humanos. O Iluminismo estabeleceu o princípio de que os seres humanos nascem essencialmente livres e iguais. E isso pouco a pouco, em um processo ambíguo e inconclusivo que durou vários séculos (ainda continuam existindo milhões de pessoas escravizadas no mundo, para não falar das brutais desigualdades socioeconômicas que não deixaram de crescer nas últimas décadas).

Pois bem: já que existem diferenças entre os seres humanos (sexo, cor da pele, estatura, força física, disposições intelectuais e estéticas etc.), como dizer que são iguais? O pensamento iluminista afirma que o são em dignidade, em direitos e tudo o que se refere à sua participação na vida pública; todos são igualmente merecedores de respeito. Afirma que as diferenças devidas à inteligência, às habilidades sociais, ao sexo ou cor da pele não devem impedir que os seres humanos tenham os mesmos direitos na vida política, social e econômica (os fatos não podem justificar nenhum princípio de igualdade ou desigualdade, pois esse princípio não é descrição de fatos, mas norma, princípio ou ideal moral).

Afirmar o princípio da igualdade humana neste sentido constitui um progresso moral que hoje nos parece quase autoevidente (ou assim queremos crer), embora não o seja de todo. E faríamos bem em ter em mente o difícil caminho que a ideia da igualdade teve que percorrer e o que ainda resta percorrer.

Dois exemplos: o sufrágio universal feminino não se difundiu até depois da Segunda Guerra Mundial; em uma democracia como a da Suíça terminou de ser obtido em 1971. A escravidão legal não foi abolida na Arábia Saudita até 1962 (embora hoje não exista como categoria legal em nenhum país do mundo, há realmente escravos em países como a Índia, China, Paquistão… quase 36 milhões em todo o mundo em 2014, segundo dados da ONG Walk Free).

O progresso moral consiste justamente em que, apesar das evidentes diferenças de fato – elas existem entre os seres humanos -, aprendemos (ou parece que vamos aprendendo, ou pelo menos queríamos fazê-lo) a respeitar os demais seres humanos como nossos iguais. Relativizamos as diferenças, pondo em primeiro plano o que nos une e não o que nos separa.

Pois bem: talvez hoje o que está historicamente na ordem do dia seja um aprofundamento do pensamento esclarecido (alguns autores falaram de um “segundo Iluminismo” ou de uma “ilustração do Iluminismo”). Complementando essa semelhança essencial entre todos os seres humanos, descoberta pela primeira Ilustração, descubra ou revele outra semelhança essencial: o parentesco que nos vincula com todos os demais seres vivos (e, mais de perto, com os animais superiores). Aqui também as diferenças que nos separam dos demais animais e das plantas são óbvias; e igualmente aqui, como no caso do primeiro Iluminismo, o que está em jogo é enfatizar mais o que nos une do que nos separa. Se o objetivo do primeiro Iluminismo foi conseguir a paz entre os seres humanos, o do segundo seria conseguir a paz entre os seres humanos e a Natureza não humana. (Em nenhum dos casos, paz equivale à ausência de conflitos).

Tratar-se-ia de “ilustrar o Iluminismo” – por exemplo – com uma psicologia moral menos esquemática que a das “Luzes” do séc. 18, que leve em conta os abismos da psique humana, evidenciados na terrível história do século 20 (como Jonathan Glover registrou no esplêndido livro Humanidade e desumanidade, Ed. Cátedra 2001). Ou recordando as Ilustrações esquecidas que as feministas encarnaram, ou os defensores dos animais do século 18 (como Alicia Puleo em seu indispensável Ecofeminismo, Ed. Cátedra, 2011). Em outras palavras: tentando recuperar tradições minoritárias, como os preciosos fios de Ariadna nos guiariam nos labirintos do presente.

A moderna biologia evolucionista nos ensina, de fato, nosso parentesco (mais ou menos próximo: mais próximo com os mamíferos do que com as coníferas) com os demais seres vivos do planeta, parentesco fundamentado na existência de ancestrais evolucionários comuns. Sem ir mais longe, todos os vertebrados terrestres descendemos dos mesmos peixes pulmonados (crosopterygiam) que há cerca de 350 milhões de anos ousaram dar o arriscado passo que os levou ao continente. Talvez fatos semelhantes não careçam de toda relevância para nossa sensibilidade moral.

Sem dúvida, os humanos somos seres vivos singulares, muito especiais em certos aspectos (um deles é justamente a capacidade de sentir simpatia e tratar moralmente os membros de outras espécies vivas); porém, ao mesmo tempo, somos seres vivos como os demais: não nos separa deles nenhum “abismo ontológico”. Se o primeiro Iluminismo enfatizava que todos os seres humanos nascem iguais (created equal, afirmava a Declaração de Independência americana), o segundo Iluminismo enfatizará que todos os seres vivos compartilhamos uma origem comum (evolutiva) natural; todos pertencemos à mesma natureza; e a biosfera é o espaço comum vital de todos nós.

Se fizermos bem as contas, o possível “segundo Iluminismo” seria o terceiro para o Ocidente. O filósofo judeu americano Hilary Putnam insistiu que não existiu um Iluminismo único – o ILUMINISMO com maiúsculas - dos séculos 17-18, mas três Iluminismos: o primeiro, vinculado a Sócrates, Platão, Epicuro; o segundo (sem cristalizar totalmente), segundo ele, vinculado à figura de John Dewey (Ética sem ontologia, Ed. Alpha Decay 2013), mesmo que aqui, sem dúvida, tenhamos que ampliar o santoral.

Quando a filosofia consegue encarnar em um movimento mais ou menos popular, com grande capacidade de impacto cultural, nós o chamamos iluminação. Por isso falamos de um “Iluminismo grego”, do ILUMINISMO com maiúsculas na Europa dos séculos 17 e 18, e hoje estaríamos no Terceiro Iluminismo, se fôssemos capazes de impulsionar um poderoso movimento de reconstrução crítica de nossa cultura. Um Terceiro Iluminismo consciente dos pontos cegos dos dois anteriores (e, portanto, autocrítico em forma de “ilustração do Iluminismo”) e animado por valores como liberdade, igualdade, solidariedade, sustentabilidade, biofilia…

 

Jorge Riechmann

Madri, Espanha