Solidariedade? Tudo e sempre

 

Ignasi Riera Gassiot

A releitura de alguns números do Livro-Agenda Latino-Americana sugeriu a redação que não farei, de um manual sobre a aprendizagem da solidariedade, no muito e no pouco. Não gosto de espelhos e sim de janelas. E é por isso que tentarei dar os testemunhos de pessoas que me mostraram os caminhos dos outros. Filho de uma família bem numerosa e, portanto, sem a experiência certamente enriquecedora dos filhos únicos, o primeiro exemplo devo a um casal do interior da Catalunha que, quando acabaram de se casar, abriram uma "mercearia" em meu bairro de Vallcarca. Para nós, eles eram, como o mundo inteiro os chamava: "a noiva e o noivo".

Com o tempo fiquei sabendo que ele, o Sr. Josep, ia de madrugada diariamente, com um caminhão agônico, a Born. Quando voltava com tudo o que tinha podido comprar e, antes de abrir a loja, passava pelo apartamento de um homem idoso com pouca mobilidade, que morava sozinho: meu senhor Josep, madrugador, o ajudava a se lavar, a levantar-se, preparava-lhe o café da manhã, almoço e jantar e, depois, abria o seu negócio de comestíveis, em tempos de dificuldades financeiras.

Ninguém sabia disso. Depois de muitos anos que o idoso tinha morrido, o povo do bairro descobriu o mistério... e como sabíamos que o Sr. Josep não gostaria de ser elogiado por seu gesto, por muitos e muitos anos, tudo continuou igual.

Alguns meses depois, foi ele quem teve que parar. Bem: um dia, num dos muitos programas de rádio e televisão, onde me fizeram falar e, um dia quando se tratava do tema da solidariedade, contei o exemplo do Sr. Josep. No entanto, alguém que nos conhecia lhe contou. No dia seguinte um filho do Senhor Josep me chamou ao Parlamento: seu pai estava desesperado. "Olha o que dizem de mim, que eu sou solidário: eu não fiz mal a ninguém”.

Fui vê-lo para esclarecer que 'solidário' não era um insulto... Eles me informaram de sua morte, depois de alguns dias. O reitor disse algumas palavras em favor do Sr. Josep... Para concluir disse que graças a ele, que poderia não entender esse substantivo, eu havia aprendido o que significava 'solidariedade'. 

Outra pessoa que me ensinou foi o escritor Paco Candel. Éramos verdadeiros amigos. (Escrevi o primeiro livro sobre ele: ‘Candel, Paco ou Francisco’). No editorial, onde eu trabalhava, editamos vários livros do autor de os 'Outros Catalães'. Um deles: ‘Crônica de marginalizados’. Outro: ‘Os que nunca opinam’. Outro: ‘No reboque com meus personagens’. Pois bem: aquele meu amigo, que como poucas pessoas conhece minha Madri atual, ainda que tenha sido senador pelo Entendimento dos Catalães e, que publicou um livro dessa experiência: ‘Um imigrante no Senado’, tinha uma fobia, quase doentia, pela leitura que usamos para fazer as 'opiniões' e os comentários da imprensa escrita de estatísticas.

Se os 'meios de comunicação' publicavam que havia baixado em quatro pontos - de 18% a 14% - o número de pobres, doentes, despejados, ou de famílias que viviam em estado de pobreza extrema..., e os artigos eram otimistas - 'A coisa melhora, o governo (local, estadual, autônomo) fez um bom trabalho' - Candel vinha me ver indignadíssimo para denunciar que não dizíamos coisa com coisa, de 14% que não tinha saído do buraco... Entendi que a sua sensibilidade era a de alguém que tinha vivido nas barracas de Montjuic, que conhecia muitas pessoas que passaram muitas necessidades. Candel abriu meus olhos: há demasiadas desigualdades no mundo... as piores nunca são notícias, porque, como um grande diretor de um importante jornal, disse como o meu Eugeni Madueño, quando eu presidia a comissão do estúdio da pobreza em Catalunha: "Madueño, há muitos artigos sobre a pobreza ... este tema não vende".

Tínhamos posto para funcionar muitos parlamentos autônomos, grupos a favor da Paz no Saara. Muitas vezes, viajávamos a Tinduff, onde os saarauís tiveram que se mudar, para que a Espanha decidisse "deixar" a colônia africana de fosfatos e áreas de pesca privilegiadas. Numa das áreas mais inóspitas daquele deserto... foi instalada uma cidade inteira, que as autoridades marroquinas queriam dominar. Os sobreviventes viviam em um dos mais pobres desertos da Argélia, esperançosos, apesar de tudo, pela promessa de um referendo que havia anunciado, categoricamente, que os anos da ONU haviam se passado: e um referendo sobre isso - e depois em guerra permanente contra o Marrocos.

Nos 'wilaies' e 'jaimes', as mulheres tinham que assumir toda a organização da vida cotidiana... inclusive a escolarização das crianças. Havíamos promovido algumas colônias de verão... com uma finalidade não declarada: que os oftalmologistas catalães visitassem as carências de visão daquelas crianças do deserto. Pois bem: ali descobrimos que a prioridade de um povo, que vive em condições tão precárias era a atenção aos mais velhos, a saúde e a educação das crianças e a atenção especial às pessoas com deficiências psíquicas.

Lição: quando o princípio de solidariedade é a prioridade, não há fronteiras.  Em 1988, amigos chilenos - alguns deles, descendentes dos catalães republicanos, que tinham chegado ao exílio graças ao ‘Winnipeg’, do barco que havia promovido Pablo Neruda nos pediram apoio: o sinistro Pinochet tinha decretado um referendo, fora do alcance dos recursos de muitos chilenos (que deviam pagar para poder votar), para perpetuar-se no cargo. Na delegação que havia voado de Madri havia pintores, atores, cantores/compositores e músicos, escritores, professores universitários e sindicalistas.

As pessoas, empobrecidas, tinham se organizado em 'povoações', comiam em uma panela comum e nas noites encontravam espaços onde se reunir. No aeroporto me haviam confiscado todos os livros de poesia de Pablo Neruda. Como tinha cópias manuscritas de um punhado de poemas, nas casas onde ia dormir, toda a família passava a noite copiando esses poemas - e eu roncava para roncar! 

Também queria mencionar duas pessoas, que me ensinaram porque tínhamos que ser solidários... se pretendíamos ser pessoas: o bispo Casaldáliga e o fotógrafo Joan Guerrero. Tenho na minha frente os livros de ambos: ‘Os olhos dos pobres’. Na capa do livro lemos: "Na Amazônia do Mato Grosso é conhecido como Dom Pedro. (...) Sua divisa: se 'não puser nada, não tirar nada, não emitir nada, não silenciar nada e, de passagem, não matar nada '... foi o apóstolo dos Excluídos... De Juan Guerrero: "Nasci em Tarifa em 1940”. O vento dos dois mares que se encontram no Estreito me marcou profundamente. Sou uma árvore transplantada, que se enraizou na Catalunha. Se ele morava no bairro dos Poblesec - na escada, a propósito, onde também morava Joan Manuel Serrat, ele foi para Santa Coloma de Gramanet, uma antiga aldeia rural, convertida em um espaço variado, símbolo dessa transformação especulativa, que subjugou o meio ambiente de Barcelona. Ele nos diz: "Fui um cara de sorte e sempre tentei aprender, inclusive nas situações, mais dolorosas". Em uma foto de um homem velho, de Joan Guerrero, com olhos estáticos, mas sereno, estes versos de Pedro Casaldáliga:

“Você tem toda razão,

toda a verdade do mundo,

toda a vida nas minhas costas.

Você pode ficar cara a cara

e nos olharmos frente a frente,

desafiando-no ...”

Outra lição de solidariedade, uma lição que vale muito mais que um Mestre (sem trapacear, ai!). Sobre as vítimas do franquismo. Ao coordenar o livro “Memória da Noite Negra”, os exemplos de solidariedade dentro das prisões, apesar da vigilância besta dos carrascos, partem seu coração. E mais ainda as mulheres presas que, além de criar os filhos, se reúnem para poder recordar aos presos que elas estão lá, que elas os amam, que elas estão, talvez inconscientemente, também presas sem que nenhum juiz o tenha dito. Lendo as memórias, que acabam de aparecer, os primeiros trinta e tantos  anos de Lluís Martí Bielsa, a impressiona: para que uma pessoa que vive na miséria desde a infância nos campos de concentração franceses, na clandestinidade, na guerrilha, em diferentes prisões... por como título do seu livro: ‘Um de tantos’. E só lamenta, quando recupera a liberdade (embora sob a vigilância da Guarda Civil), que as pessoas ao seu redor são tão mal faladas diariamente...

Termino, com um agradecimento: em tempos de luxos, de cínicos, de mentirosos em folha de pagamento, os exemplos das pessoas solidárias, anônimas, são, talvez, a última esperança que nos resta. E que, como nos dizia Miquel Martí Pol: "Que tudo está para ser feito e tudo é possível".