Suma Qamaña: Viver Bem, e Não melhor

Suma Qamaña: Viver Bem, e Não melhor

David Choquehuanca


O Suma Qamaña (em aymara “Viver Bem”) tem base na vivência dos nossos povos, um Viver Bem que significa viver em comunidade, em fraternidade, e especialmente em complementariedade, que quer dizer compartilhar e não competir, viver em harmonia entre as pessoas e como parte da natureza.

O Suma Qamaña é incompatível com o luxo, a opulência e o esbanjamento, é incompatível com o consumismo. Não é a mesma coisa que viver melhor, viver melhor que o outro, às custas do outro. Não procuramos, não queremos que ninguém viva melhor. Queremos que todos possamos viver bem. De outro lado, para viver melhor se ensina competir, por exemplo, para ser o melhor aluno do colégio, para vender mais do que os outros, ganhar mais dinheiro, conseguir mais luxo às custas dos demais. Roubar, atentar contra a natureza, mentir, não é Suma Qamaña. Isto possivelmente nos permita viver melhor, mas não é Suma Qamaña, já que, para viver melhor diante do próximo se deve explorar, chegar a uma profunda competição, fazer com que a riqueza esteja em poucas mãos. Suma Qamaña é se basear no Ama Sua, Ama Llulla e Ama Qhella, não roubes, não sejas frouxo, não sejas mentiroso, jan k’arimti, jan lunthampi, jan jairampi, são os seus códigos principais recolhidos também pela Constituição Política do Estado Plurinacional. É fundamental que, dentro das comunidades, respeitemos estes princípios para alcançar o Suma Qamaña.

Saber ouvir e compartilhar, saber viver e sonhar.

O Suma Kamanã tem quatro princípios fundamentais, que são:

1) O saber ouvir tem uma importância muito grande, ouvirmos entre nós, ouvir a Mãe Terra, ouvir todos os seres, o rio, as nossas aves, sobretudo, ouvir os mais humldes. Que ouve aprende, muda, está preparado para servir ao seu povo.

2) Saber compartilhar é saber distribuir a riqueza de modo equilibrado entre todos, o que é do povo é para o povo, na Bolívia, nacionalizando os recursos naturais, que voltem para as mãos do povo. Compartilhar é deixar de competir para se complementar, é saber dar para receber, é reconhecer que todos somos irmãos e temos uma só mãe, que é a natureza, que é Pachamama, que é esta terra.

3) Saber sonhar, saber como defender a nossa identidade, como nos completarmos de modo equilibrado, para que o mais abandonado tenha a possibilidade de compartilhar a educação, a saúde, a convivência natural e comum.

Saber se alimentar, saber beber e saber dançar.

Entre outros aspectos fundamentais, Suma Qamaña é saber se alimentar, saber fazer uso das comidas adequadas, conforme as estações do ano (alimentos segundo a época). Alimentar-se bem na base da prática dos nossos ancestrais, que se alimentavam com um determinado produto durante toda uma estação, dando segurança à saúde.

Precisamos saber beber, nas nossas comunidades temos verdadeiras festas que estão relacionadas com as épocas do ano. Cada festa tem um significado e o álcool esta presente nas celebrações, mas deve ser consumido sem exagerar ou magoar alguém. Não se pode ir aos bares e se envenenar de cerveja e se prejudicar.

Viver bem é saber dançar, não simplesmente saber bailar. A dança se relaciona com fatos concretos, como a colheita ou a semeadura. As comunidades continuam honrando a dança e a música à Pachamama, principalmente em épocas agrícolas, mesmo que as danças originais sejam consideradas expressões folclóricas nas cidades.

Saber comunicar-se e saber trabalhar

Suma Qamaña é saber se comunicar. No Estado Plurinacional se pretende retomar a comunicação que existia nas comunidades ancestrais. O diálogo é o resultado desta boa comunicação.

Precisamos nos comunicar como o faziam antigamente os nossos pais, e como resolviam os problemas sem que houvesse conflitos, já que, mais do que resolver (conflitos), procuramos reconstruir (o equilíbrio) para chegar a soluções comuns, que permitam a reconstrução da harmonia da comunidade e como parte da mãe natureza.

A diferença do capitalismo, onde se paga para trabalhar, no Estado Plurinacional, retoma-se o pensamento ancestral de considerar o trabalho como felicidade e festa. Por ser parte do crescimento da pessoa, na nossa cultura, trabalhamos desde crianças. O trabalho é felicidade, desde a criança até o avô. Trabalhar é aprender crescer, é como respirar ou caminhar. Não conhecemos ninguém vivendo e gozando do trabalho alheio. No trabalhar e explorar o próximo talvez nos permita viver melhor, mas não é Suma Qamaña.

Para lá do socialismo, o mais importante é a vida

Para nós foram oferecidos dois caminhos, um caminho que vai pelo lado do capitalismo, onde o mais importante é o dinheiro, a obtenção do maior valor, a ganância, a vida não importa, não interessa as pessoas. De outro lado, o socialismo procura a satisfação das necessidades cada vez mais crescentes, tanto materiais, como espirituais, do ser humano.

No Suma Qamaña o mais importante não é o ser humano em relação ao dinheiro; o mais importante é a vida. Indo para além do socialismo, tudo está em função da vida. O ser humano está em segundo lugar, antes estão as formigas, as mariposas, a água, os rios, as pedras, as árvores, as colinas, a lua, as plantas, os animais. Depois estamos nós.

Somos parte da natureza, somos a natureza

Nós, seres humanos, somos uma parte “não mais” do cosmos, da natureza, não somos o centro, mas simplesmente uma parte muito pequena. Não é nosso papel procurar uma vida em harmonia entre o ser humano e a natureza, visto sermos parte da natureza, somos natureza. Quando dizemos «ser humano e natureza» não nos separamos da natureza.

Chamada tumpa na língua aymara, a responsabilidade da comunidade é cuidar dos seus membros e seu contexto, de modo que, cada um de nós, cuidemos da saúde e do bem estar de todos e todos, sem deixar ninguém de fora. Sempre nos preocupamos, vigiamos, estamos curiosos.

No Suma Qamaña, todos nós podemos nos sentir bem, desfrutar plenamente da vida baseada em códigos que resistiram a mais de 500 anos. É a identidade que os nossos avós nos legaram, o equilíbrio, a complementariedade e o consenso que todos estão relacionados com o Suma Qamaña. De outro lado está a dignidade, a justiça, a liberdade e a democracia, todos estão relacionados com o viver melhor.

Em outra ordem de coisas, a construção de um Viver Bem para se contrapor à Crise Global, significa acabar com o consumismo, o esbanjamento e o luxo, consumir só o mais necessário, diminuindo a influência econômica global até níveis de produção e consumo de energia dentro dos limites que a saúde e os recursos do planeta permitam.

Para conseguir isso, se requer, antes de tudo, que os países do Norte mudem. Devem assumir sua responsabilidade nos danos, parando a mudança climática, a super-exploração dos recursos naturais e enfrentando o esgotamento irrevogável da natureza e da energia. Devem pagar a «dívida ecológica», em vez de os países do Sul pagarem a dívida externa, e não so com os países do Sul, mas com todos os países do mundo.

Enquanto milhões e milhões de pessoas não têm possibilidades de viver bem e morrem de fome a cada ano e a saúde do planeta se agrava, é preciso persuadir as famílias da alta sociedade que só buscam luxos e que gastam milhões de dólares em como emagrecer e em combater a obesidade, a que abandonem o luxo e o excesso de consumo, que não pensem somente no dinheiro e no acúmulo de capital, mas pensem nos demais, na humanidade, no planeta, na Mãe Terra.

Pela gravidade do fenômeno, todas as economias ocidentais devem imediatamente dar um giro radical em seu rumo. Devem iniciar as transformações estruturais necessárias para substituir os atuais modelos de desenvolvimento baseados no mercado, na exploração irracional da humanidade e dos recursos naturais, no gasto de energia e no consumismo. Num período relativamente curto, devem abandonar a industrialização e a fé no desenvolvimento, como também controlar sua dependência de soluções técnicas de grande escala. Devem também, iniciar mudanças locais, regionais e globais para modelos que priorizem a vida, a harmonia e a complementariedade entre os seres humanos e dos mesmos com a natureza.

Na construção do Viver Bem, nossa riqueza econômica e espiritual está diretamente ligada ao respeito à Mãe Terra e ao uso respeitoso das riquezas que ela nos oferece. A única alternativa para o mundo nesta Crise Global e a única solução às crises da natureza é que nós, os seres humanos, reconheçamos que somos parte da Mãe Natureza e que necessitamos restabelecer as relações complementares, de respeito mútuo e de harmonia com ela.

Suma Qamaña (aymara) = Sumak Kawsay (quechua) = Viver Bem (português).

David Choquehuanca

Chanceler do Estado Plurinacional da Bolívia, La Paz