Sumak Kawsay e pós-neoliberalismo

Sumak Kawsay e pós-neoliberalismo

O problema não é o neoliberalismo, mas o capitalismo

Pablo Dávalos


- Um dos paradoxos mais visíveis no Equador é que quanto mais é uma economia dolarizada, tem a legislação mais avançada em «o Bem Viver». Como convivem essas duas realidades? Que materialidade tem, além da Constituição, a questão do Bem Viver?

- Nós utilizamos o dólar para todas as transações, não temos moeda nacional. Os dólares, então, vêm necessariamente por via do comércio exterior. Isso tem obrigado a que a economia equatoriana seja muito aberta em relação aos mercados mundiais. Ao estar muito abertos, somos muito vulneráveis. O esquema de dolarização tem se sustentado, basicamente, por remessas enviadas pelos migrantes. E, além disso, pela conjuntura dos altos preços do petróleo...

- Ou seja, a dolarização se mantém por receitas externas...

- Essas duas fontes, o petróleo e as remessas, têm mantido a dolarização, o que significa que a economia equatoriana está se tornando uma economia rentável, de consumo, em que não há produção. Isso também se pode perceber no fato de que o desemprego – aberto e fechado – atinge 60% da população ativa. Ou seja, de cada 100 equatorianos com capacidade de trabalhar apenas 40 têm emprego formal.

- Que tipo de proposta surge dos movimentos?

- Diante disso, os movimentos sociais, e em especial o movimento indígena, têm proposto um novo paradigma de vivência e convivência que não se coaduna nem no desenvolvimento nem na noção de crescimento, mas em noções diferentes como a convivência, o respeito à natureza, a solidariedade, a reciprocidade, a complementariedade. Este novo paradigma ou esta nova cosmovisão é denominada como a teoria de sumak kawsay ou o «Bem Viver» e efetivamente tem sido abrigada na Constituição equatoriana como regime alternativo de desenvolvimento.

- Quais os pontos centrais de seu caráter alternativo?

- Em primeiro lugar, há que romper as individualidades estratégicas, porque no capitalismo cada um pensa primeiro em si mesmo, cada um diz «primeiro eu, eu sou cidadão, eu sou consumidor, eu maximizo meus benefícios e utilidades...». O sumak kawsay propõe uma solidariedade dos seres humanos consigo mesmos, que tem sido barrado pelo discurso do liberalismo. Mas, diferente do discurso do socialismo – que propunha uma relação com uma sociedade maior, e desta sociedade com o Estado –, no sumak kawsay a relação do indivíduo já não é com o Estado, mas com sua sociedade imediata, com sua comunidade, onde os seres humanos têm suas referências mais próximas. E esta sociedade, por sua vez, se relaciona com outras sociedades maiores, de tal maneira que as estruturas de poder se constroem debaixo para cima e não de cima para baixo.

O segundo elemento que propõe o sumak kawsay é tirarmos da cabeça a noção de que «o mais é preferível ao menos», ou seja, de que sempre temos que «produzir e ter mais», segundo reza o paradigma do desenvolvimento, do crescimento, da acumulação. E não ver nos objetos a ontologia dos seres humanos.

- Isso supõe uma mudança radical no modo de vida...

- Por isso, o terceiro elemento tem a ver com a dimensão do tempo. Cremos que o tempo é linear e, portanto, cremos na acumulação. A estrutura do tempo vigente neste momento pertence ao capital. O sumak kawsay propõe devolver à sociedade o tempo: uma noção de temporalidade em que o tempo possa ser circular e aberto.

Um quarto elemento é conferir-lhe um sentido ético à convivência humana. Para o liberalismo pode haver democracia política, mas não pode haver democracia econômica, por isso a formação de lucro das empresas e dos consumidores não têm absolutamente nada a ver com a ética. O sumak kawsay propõe uma mudança: já não pode mascarar decisões sociais em nome de um consumo individual. E isso significa que os recursos que têm sido produzidos pela exploração do trabalho ou da depredação ambiental já não podem ser objetos de permuta social. Temos agora conquistado certa legislação, por exemplo, para defendermos da escravidão ou do trabalho infantil. Mas temos que avançar mais além.

- Quando se fala de alternativa como Cone Sul, geralmente se coloca o neodesenvolvimentismo contra o neoliberalismo. Quais seriam as características alternativas a esta via neodesenvolvimentista que hoje é o que tem um consenso relativo na região?

- O centro do problema não é o neoliberalismo, mas o capitalismo. O neoliberalismo é uma forma que assume o capitalismo, uma forma concentrada no poder que tem as corporações e o capital financeiro-especulativo. O capitalismo pode criar novas formas ideológicas, políticas, simbólicas e um modo de reinventar-se e ganhar legitimidade através dessas formas, que nem sequer são keynesianas, mas neodesenvolvimentistas. Fundamentalmente levam a pensar que se nós exploramos a natureza, vamos ter recursos para fazer uma ação social. Isso é um engano; como foi aquele em que se dizia na época do neoliberalismo: que se privatizássemos absolutamente tudo, teríamos estabilidade econômica. Nunca a tivemos. Assim como agora: se exploramos todos os recursos da natureza, tampouco vamos ter recursos para o setor social, nem para o pleno emprego.

- Você adverte sobre a capacidade do neoliberalismo de reinventar-se?

- Estamos vendo como a América Latina entra num processo de reconversão, caracterizado pela desindustrialização e a produção de commodities baseadas em matérias primas, onde os governos utilizam o monopólio legítimo da violência para garantir a expropriação territorial, isto é, a propriedade dos povos ancestrais, para por esses recursos naturais em circulação na órbita do capital. O neoliberalismo, através do Consenso de Washington e das políticas do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial (BM), adequaram as economias em função das necessidades do sistema-mundo, mas isso não significa que o neoliberalismo tenha alcançado as metas de estabilidade macroeconômica, nem muito menos. Agora estamos passando para uma nova dinâmica, sustentada pela produção e renda de matérias primas. Há que estar atentos aos discursos que querem justificar estas práticas extrativistas. O sistema que chamamos de capitalismo tem que ser mudado, com as relações de poder que o atravessam, com os imaginários que o constituem. O capitalismo tem que ir para o arquivo da história da humanidade, porque se continua, vai por em risco a vida humana sobre o planeta Terra.

- A partir de sua perspectiva, o neodesenvolvimentismo é compatível com o liberalismo. Isto tem a ver com certa circulação nas «receitas» dos organismos internacionais como o Banco Mundial?

- O neoinstitucionalismo econômico é a doutrina, o corpus teórico-analítico-epistomológico que está conduzindo as transformações e a mudança institucional da América Latina e do mundo. O institucionalismo implanta um discurso crítico aos mercados. Há um texto de Stiglitz, «O mal-estar na globalização», publicado nos inícios de 2000, onde se converte no mais duro crítico do FMI e o acusa de coisas que nós, pela esquerda, o havíamos acusado já na década de 80. Mas tem o detalhe de que, então, Stiglitz era presidente do BM! Quer dizer, trabalhava em Washington, no escritório em frente ao FMI. Isto explica porque tem o Banco Mundial realizado estudos a respeito da reativação do Estado; tem um de 1997, «Reconstruindo o Estado», que propõe a forma de reconstruir o Estado e a institucionalidade pública. Mas também recomenda a participação cidadã, a democracia direta, o respeito à natureza, a eliminação da flexibilização trabalhista, etc. Então, de duas uma: ou o Banco Mundial se tornou de esquerda ou a esquerda se tornou o Banco Mundial.

- Qual é sua resposta?

- É necessário começar a indagar e a posicionar os debates econômicos. Porque, na década de 80, tínhamos bem claro o que significava o Consenso de Washington e o neoliberalismo. Na versão de Friedman, Hayek, Von Mises ou dos neoliberais daqui, como Cavallo, resta que o neoliberalismo vai mudando, transformando; o capitalismo de 2000 não é o de 1990, absolutamente. Por isso, se socorre agora a outros expedientes teóricos muito mais complexos, com uma epistemia mais interdisciplinar. E o que fazemos na esquerda? Ficamos criticando o Consenso de Washington, quando já tem sido criticado pelo mesmo FMI e, inclusive, pelo BM! Resulta que agora, na década de 2010, vemos como as mudanças teóricas se dão até no neoinstitucionalismo e a esquerda latino-ameri-cana não tem criado sua oportunidade de analisar e discutir com o neoinstitucionalismo econômico. Não podemos permanecer nos marcos epistemológicos que justificam a nova imposição neoliberal. Por isso, aqui no Equador, falamos de pós-neoliberalismo, para nos referir à etapa da mudança institucional.

Pablo Dávalos

Ex-vice-ministro de Economia do Equador