TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO, TEOLOGIA DECOLONIAL

 

Juan José Tamayo

A colonialidade, constitutivo da modernidade.

             A colonialidade e a modernidade não são entendidas como fases cronologicamente sucessivas, mas como fenômenos interdependentes dentro do sistema mundial capitalista. A colonialidade tampouco é um elemento a ser acrescentado à modernidade, mas seu constituinte, o pano de fundo e o lado oculto e sombrio da narrativa europeia da modernidade. Ela é, por sua vez, um elemento específico que constitui o modelo global do poder capitalista. Sustenta Aníbal Quijano, criador do termo, que esta se baseia "na imposição de uma classificação étnico-racial da população mundial, como pedra angular desse padrão de poder, operando em todos os planos materiais e subjetivos da existência cotidiana e em uma escala social".

            Por sua vez, Walter Mignolo, um dos mais importantes teóricos do projeto Colonialidade-Modernidade, revela outra dimensão oculta, ainda mais dramática, por trás da retórica da modernidade: quão prescindível era a vida humana, por exemplo, a dos escravos africanos durante a conquista da Ameríndia e da população em geral desde a Revolução Industrial, com o único propósito de aumentar a riqueza.

            A alternativa à dispensabilidade da vida humana é o surgimento do paradigma-outro, que identifica uma nova forma de colonialidade, a global, diferente da colonialidade imperial-religiosa dos séculos XVI e XVII e da colonialidade imperial-nacional do século XVIII até meados do século XX. É um paradigma em diálogo com outros: cristão, marxista, liberal, neo e pós; um pensamento crítico e utópico.

            O paradigma-outro emerge da exaustão do projeto da modernidade e conecta formas de pensamento crítico "emergentes" nas Américas (latino-americana, afro-americana, nativo-americana, pensamento crítico na América Latina e no Caribe), no norte da África, na África subsaariana, no sul da Índia e no sul da Europa.  A partir daí, começa a tomar forma a virada decolonial, que pensa na modernidade como uma colonialidade do ser, do poder, do conhecimento, da colonialidade sobre a natureza, da colonialidade econômica e da colonialidade estética.

            Considero a contribuição de Dussel para a virada decolonial particularmente original e inovadora com sua proposta de transmodernidade em oposição à pós-modernidade de alguns intelectuais do Norte.

            Ele não acredita que seja possível aplicar, imitar ou desenvolver a modernidade em outras culturas, uma vez que ela é inseparável da colonialidade e se constitui na dominação das culturas periféricas e coloniais. Por outro lado, crê que é necessário superar radicalmente a Modernidade e convergir em uma nova Era da Humanidade, na qual as culturas terão de respeitar umas às outras como iguais e formar uma cultura mundial pluriversal que possa articular todas as culturas existentes em similaridade.

            Para isso, propõe um diálogo filosófico Sul-Sul e Sul-Norte, sem cair no fundamentalismo que nega a modernidade em sua totalidade, nem na colonialidade do conhecimento, do ser, da existência e do poder. O resultado é a descolonização da cultura, da epistemologia, da tecnologia e da teologia.

 

É a Teologia da Libertação (TdL) latino-americana uma teologia decolonial?

             Walter Mignolo exclui a teologia da libertação da virada colonial. No máximo, ele reconhece que ela representa uma mudança no conteúdo da conversa, mas não de seus termos. A teóloga Marcella Althaus-Reid, uma das principais representantes da teologia queer, faz duas afirmações: que a TL tem funcionado como teologia colonial e tem definido ideologicamente uma identidade cristã baseada em identidades patriarcais e coloniais; e que as igrejas militantes da libertação apoiaram construções teóricas coloniais na América Latina.

            Minha opinião difere da de Mignolo e Althaus-Reid. Acredito que as diferentes teologias da libertação latino-americanas fazem parte da genealogia do pensamento decolonial porque, desde seu nascimento, elas se distanciaram e entraram em conflito com as ciências sociais, as epistemologias e a hermenêutica teológica do Atlântico Norte.

            A obra pioneira de Gustavo Gutiérrez, Teologia da Libertação. Perspectivas (1971) reflete a influência de seu compatriota José Carlos Mariátegui, um marxista heterodoxo, que já pode ser sentida em sua consideração da reflexão teológica como uma teoria crítica da igreja e da sociedade à luz da Palavra, animada por uma intenção prática e indissoluvelmente ligada à práxis histórica.

            Em perspectiva decolonial podemos considerar os textos de José Míguez Bonino, um dos principais representantes da TdL no protestantismo latino-americano. Em sua obra Hacer teología en una situación revolucionaria (1975), ele se referiu a dois projetos fundamentais do cristianismo na América Latina: o colonial espanhol, ligado ao catolicismo romano, e o neocolonial do Atlântico Norte, ligado ao protestantismo. Ele argumenta que o cristianismo foi cooptado para os sistemas colonial e neocolonial como autorização religiosa e justificativa teológica.

            Desde o início, há uma dupla ruptura entre a teologia da libertação e a teologia europeia: uma ruptura política, definida como conflito político entre seus respectivos interlocutores, e uma ruptura epistemológica com as velhas formas eurocêntricas de conhecimento, que são incapazes de explicar os problemas da América Latina, muito menos de responder a eles. A ruptura deriva da centralidade que a TdL dá ao conflito social e à práxis transformadora. A teologia europeia aborda a realidade na medida em que ela é pensada e tende a resolver o problema da pobreza e da desigualdade por meio do pensamento teológico, e não por meio da práxis transformadora.

            Para a TdL, o conhecimento também tem um caráter ético, político e militante, de acordo com a tese 11 de Marx sobre Feuerbach: "Os filósofos apenas interpretaram o mundo de várias maneiras, mas trata-se de transformá-lo". A função libertadora do conhecimento é concretizada na transformação da realidade. O discurso teológico da libertação parte do "estado real", não do "estado teológico", do que a própria realidade nos mostra, não do que a teologia mostra ou diz sobre a realidade (Dussel, Sobrino).

            Outro ponto de ruptura diz respeito aos interlocutores, aos desafios e às perguntas aos quais uma teologia e a outra tentam responder. O interlocutor privilegiado da teologia europeia é o ser humano descrente com uma ideologia liberal. O principal desafio vem da descrença em suas várias manifestações. As perguntas que ela tenta responder são: como falar de Deus em um mundo que atingiu a maioridade, emancipado da religião? Como tornar Deus racionalmente crível em um ambiente de descrença? Como harmonizar ciência e religião?

            Os interlocutores privilegiados da TL são as maiorias populares oprimidas, as classes sociais exploradas, as culturas destruídas, os conhecimentos não reconhecidos, as espiritualidades indígenas demonizadas, os povos nativos colonizados, os grupos étnicos desprezados, as identidades sexuais discriminadas.

            À luz da mudança de interlocutores, a pergunta vai em outra direção que não a da teologia europeia moderna: como anunciar o Deus da vida, da paz, da solidariedade, da fraternidade-sororidade em um mundo dominado pela injustiça, pela falta de solidariedade e pela violência estrutural e em uma natureza depredada pelo modelo de desenvolvimento técnico-científico da modernidade? O desafio ao qual ela responde não é o ateísmo, mas a idolatria, os deuses que exigem sacrifícios humanos e da natureza.

            Desde o início, a TdL criticou o cativeiro em que se encontrava a teologia europeia, construída por um sistema conceitual formalmente perfeito, mas muitas vezes vitalmente estéril, por um alto grau de abstração, que dificultava a identificação e a crítica dos mecanismos de dominação. Criticou a suposta onipotência da razão iluminada como critério último da verdade, ao mesmo tempo em que revelou sua fragilidade, como no caso do dinossauro, o maior e mais poderoso animal que desapareceu por ser forte demais e, no final, fraco demais para resistir às transformações ambientais.