Ubuntu: ser e viver áfrica

 

Moacir José Rudnick

“Ubuntu é uma maneira de estar na vida. É uma palavra que condensa a verdadeira
essência do que é ser Humano. A minha humanidade está intrinsecamente ligada à
tua e, por isso, eu sou humano porque pertenço, participo e partilho de um sentido de
comunidade. Tu e eu somos feitos para a interdependência e para a complementaridade.”
Desmond Tutu

Em 2020, o planeta levantou a voz para se defender. A pandemia da COVID-19 afetou duramente o mundo, reivindicando vidas e ampliando desigualdades. As economias enfrentam recessões profundas. Pela primeira vez, em 30 anos, a pobreza está aumentando, enquanto a pandemia afasta o mundo cada vez mais do alcance da Agenda 2030, estabelecida pela ONU. África não está isenta a tudo isso. África, como um continente dinâmico, variado e em rápido crescimento com a população mais jovem do globo, com idiossincrasias, paradoxos, riscos e
oportunidades, busca seu lugar e reconhecimento.
Estamos nos readaptando a um “novo normal”. Com a distribuição das vacinas da COVID-19, o mundo pode começar a alimentar a esperança de que o fi m está à vista. No entanto, isso não pode signifi car um regresso à forma como muitos de nós vivíamos antes. O mundo deve aproveitar para criar um futuro melhor. Em dezembro de 2020, o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, afi rmou que a humanidade deve fazer as
pazes com a natureza, caso contrário, enfrentará, no futuro, problemas muito mais graves do que a COVID-19. Fazer as pazes com a natureza exige a reorientação do sistema. Exige uma transformação de longo prazo da forma como a humanidade extrai e consome recursos. Exige uma transição rápida e permanente para um mundo que funcione com a natureza e não contra ela. Isto tudo é um imperativo para a África e para toda a humanidade.

Contexto Africano
África, 54 países, mais de 1.300 milhões de habitantes, mais de mil idiomas. A África é rica em recursos naturais, desde terras aráveis, água, petróleo, gás natural, minerais, florestas e vida selvagem. O continente detém uma grande proporção dos recursos naturais do mundo, tanto renováveis como não renováveis. O capital natural
sustenta a economia do continente. A terra é um ativo de desenvolvimento econômico e também um recurso sociocultural. O fl uxo de benefícios gerados por esses recursos está sendo reduzido ao longo do tempo: por meio de fl uxos fi nanceiros ilícitos, mineração ilegal, extração ilegal de madeira, comércio ilegal de vida selvagem, pesca
não regulamentada, degradação e perda ambiental; alimentadas pela corrupção e ganância do capital selvagem. Coletivamente, o continente tem muito a ganhar, reunindo e aproveitando seus vastos recursos naturais para fi nanciar a agenda de desenvolvimento para uma maior prosperidade; e deve também garantir que, o crescimento e a exploração futura dos recursos naturais, sejam orientados para os resultados em benefício do seu povo, resilientes ao clima e sustentáveis. Neste campo, os movimentos sociais e populares têmestado atentos e acompanhado os processos, apesar de todos os entraves que lhe são postos.
Assistimos os crescentes protestos da juventude africana, que revelam a insatisfação com as suas elites e a falta de oportunidades. As democracias africanas continuam a demonstrar sua resiliência, apesar das restrições e tensões persistentes, que afetam a coesão social nos 54 países da África; à custa da precaução a COVID-19 e ameaças terroristas. Muitas dessas democracias passam por estados de fragilidade, partidos governantes aproveitaram
para impor mais controle sobre as instituições. De um modo geral, vários países caíram em padrões regressivos de negação de direitos políticos aos cidadãos, liberdades civis e outros indicadores gerais.
Desenvolvimentos culturais e artísticos pressagiam posicionar o continente como um pioneiro e um centro global de excelência. Alguns dos protestos e movimentos sociais mais vibrantes do mundo estão acontecendo em diferentes lugares da África. Em outras palavras, não há uma única narrativa “africana” em qualquer direção, mas acontecimentos pontuais de resistência e enfrentamento, na sua maioria inspirados na filosofia UBUNTU.
UBUNTU: “Eu sou porque tu és”
Esta palavra, que encontra expressão em variadas línguas africanas, condensa uma filosofia de vida holística, transversal e independente de qualquer país, cultura, religião ou afiliação política. Ubuntu significa “Eu sou porque tu és”, ou seja, eu só posso ser pessoa através das outras pessoas. Ubuntu, uma palavra e muitos significados: amizade, solidariedade, compaixão, perdão, irmandade, amor ao próximo. A capacidade de entender e aceitar o outro.
A filosofia Ubuntu trata da essência do ser humano, que valoriza a importância do “eu” na sua busca de sentido através do encontro com o outro, numa relação de interdependência construtiva, procurando resgatar o que de mais profundo e humano cada um de nós guarda em si. O que cada um faz, ou que deixa de fazer, tem consequências na vida dos demais. Assim, a filosofia Ubuntu propõe que cada um aprenda a descobrir-se, a si e ao outro, comunicando-se, relacionando-se, preservando e potenciando a singularidade de cada um. Na
essência do “Eu Sou porque Tu És” está o cuidado, a atenção, a proteção, a relação, intrínsecos à essência do ser Humano. Cuidar de mim, cuidar do outro e cuidar do planeta leva ao sentido e ao propósito, tantas vezes enublado ou escondido por uma sociedade que se foi, em tantos aspetos, desumanizando.
Ser Ubuntu é acreditar numa humanidade comum e interdependente. O bem-estar e a felicidade individual estão intimamente ligados ao bem-estar e felicidade do outro. Por isso, podemos afirmar que Ubuntu e o Bem Viver dos povos ameríndios são fenômenos correlatos: por seus elementos comuns e pela origem. É interessante constatar
que conceitos com notáveis semelhanças tenham sido sistematizados simultaneamente em pontos diferentes do globo, como resgate das culturas originárias, sem que tenham tido contatos explícitos em seus processos de elaboração, como fenômenos motivadores de que um outro mundo é possível. Ambos propõem uma mudança nas relações dos seres humanos entre si, e entre estes e a natureza. Duas ideias estão em sua base: 1) uma relação comunal entre as pessoas, alicerçada na reciprocidade e na igualdade; e 2) uma concepção holística da relação
homem/natureza, uma integração em lugar de domínio e exploração, uma relação harmônica com a natureza e com as gerações passadas e futuras.
A filosofia Ubuntu tem sido a base de vários grupos para assumirem um papel de protagonismo, no contexto Africano, de enfrentamento nas diferentes situações de violações dos direitos fundamentais e resgate da cidadania e no cuidado da vida e do planeta. Neste espírito, estes têm procurado capacitar jovens e educadores para
uma ética do cuidado, onde cada um se considere responsável por cuidar de si, dos outros e do planeta.
Num mundo, cada vez mais fragmentado e tantas vezes extremado, onde o medo é tantas vezes o motor de decisões com consequências trágicas, urge criar uma cultura de pontes e capacitar um número crescente de construtores de pontes, pessoais, territoriais, geracionais, culturais, civilizacionais, que ajudem no caminho de um mundo mais coeso e solidário, mais digno e mais humano.
A construção de pontes está intimamente ligada ao que de mais profundo a filosofia Ubuntu defende.
A capacidade de se reconhecer interdependente é uma das características fundamentais para qualquer construtor de pontes. Este é motivado por um desejo enraizado de querer fazer a diferença na vida dos outros e no mundo que o rodeia. É a partir desta premissa que estão sendo trabalhadas novas lideranças, indicando que é um caminho que implica um conjunto de competências, que têm de ser desenvolvidas ao longo da vida. Na convicção
de que as características de liderança se aprendem e se potenciam, se investe na capacitação de pessoas, com o objetivo de que cada um descubra quem é, que capacidades tem, quem quer servir e como quer servir.