«Um outro mundo é possível» Quarto Foro Social Mundial, na Índia
«Um outro mundo é possível»
Quarto Foro Social Mundial, na Índia
Sergio FERRARI
Após três edições de sucesso crescente e acumulado em Porto Alegre, Brasil, o Foro Social Mundial (FSM) se translada à Índia. Bombaim, no início de 2004, constitui a sede da convocação de organizações, movimentos sociais, redes e personalidades «alter-mundialistas» mais importante que existe até o momento.
O quarto FSM se realizará em um momento muito especial da história da humanidade, o que exige um verdadeiro salto em relação à qualidade e à criatividade da reflexão. Passado mais de meio ano desde o fim da guerra contra o Iraque, uma nova lógica de hegemonia mundial estará em plena execução e o movimento que contesta a globalização neoliberal haverá, também, rede-senhado novas estratégias.
Índia 2004 logo se constituirá em um dos principais cenários de reflexão e ação do movimento social após o terremoto geo-político-militar do primeiro quadrimestre de 2003.
Depois do parto... crescer. Depois... amadurecer
Poucos continentes como o asiático, com quase metade da população mundial, serão tão decisivos para a futura marcha do planeta. E, se o Brasil era «gigante» em um Foro notoriamente euro-latinoamericano em suas três primeiras edições, a Índia definirá a magnitude real do FSM no nível planetário. Com a garantia de orga-nizações sociais, especialmente camponesas, que conta-bilizam milhões, com a convicção de uma longa história de luta e de consciência anti-colonial e com as contra-di-ções de um país super-povoado.
Uma ocasião única para trocar experiências, mudar o conjunto um tanto repetitivo das personalidades que animaram os três foros anteriores e, sobretudo, para enraizar a dinâmica do FSM nos processos sociais desta sensível região do planeta.
«Debater tudo para encontrar alternativas», poderia reatualizar o lema «Outro mundo é possível», que definiu as três primeiras edições. Nesse debate, a expe-riência, as deficiências, as frustrações e as sínteses indicativas de Porto Alegre serão preciosas. Daí, a impor-tância de sistematizar os caminhos já percorridos confrontando com maturidade os mais profundos desafios e dilemas.
Primeiro dilema para Bombaim 2004: a complexa relação quantidade-qualidade. Como obter uma participa-ção ampla e massiva, e ao mesmo tempo dar um passo adiante na qualidade de reflexão estratégica? E, acima de tudo, como assegurar que se chegue à síntese em um universo de participação tão transbordante e heterogê-nea?
Se é certo que a universalização (geográfica, setorial e temática) da discussão aparece como necessidade vital à própria essência do FSM, não menos evidente é o fato de que nutrir o movimento social com alternativas viáveis ao atual modelo dominante se converte em uma exigência cada dia mais urgente. Não apenas para asse-gurar a sobrevivência do planeta e do ser humano, mas também para impedir que a nova lógica bélica siga des-truindo social e ecologicamente a Terra.
Dilema adicional: como assegurar que o FSM não perca a riqueza da amplitude democrática de seus atores/participantes, ao mesmo tempo evitando cair em um labirinto indigerível e incoordenável? Diversidade e síntese aparecem como faces opostas de uma mesma moeda. Falta, no entanto, encontrar uma metodologia que torne essa dialética, que até então permanece entravada, viável Desafio essencial para Índia 2004.
Concebido originalmente pelos convocadores como espaço de debate, de intercâmbio de experiências e de articulação (Carta de Princípios, 12-14), a própria natu-reza do FSM entrará em debate na Índia a partir de seu desenvolvimento prematuro.
Dilema-chave a respeito de sua identidade: O FSM pode, ou não, converter-se em um Movimento de Movi-mentos Sociais, mais sólido e estruturado do que foi pensado em 2001, quando nasceu?
Apesar de haver consenso de que é inimaginável transformar o FSM em outra internacional política (como foram a primeira, a segunda, a terceira e a quarta), também é evidente o passo adiante dado em novem-bro de 2002 pelo Foro Social Europeu de Florença, Itália, com relação à sua capacidade de convocação e disputa política. A própria experiência que viveu o mo-vimento alter-mundialista, em 2003, será um ponto importante de reflexão em sua quarta edição. As maiores mobilizações anti-guerra já vistas, na história do planeta, são filhas «naturais» do FSM. A de 15 de fevereiro de 2003 reuniu, em um mesmo dia, quase quinze milhões de manifestantes em 600 cidades, convocação que se repe-tiu, em uma dimensão menor, cinco semanas após o 22 de março.
E daí, um dilema não menos importante: um FSM para a reflexão, para o debate e para a socialização de agendas ou um FSM que adicionalmente converta-se em promotor chave da mobilização planetária contra a glo-balização neoliberal e suas variantes hegemônicas e bélicas?
À medida em que o FSM ou suas expressões locais, nacionais ou regionais convoquem/hegemonizem o protesto social, dois temas essenciais aparecerão como necessidade decisiva do movimento social para debater-se em Bombaim: o das formas de luta, por um lado, e o do risco da «ilegalização».
Em três momentos a Carta de Princípios do FSM se posiciona a respeito do tema da violência. Quando se opõe a «toda visão totalitária e reducionista da história e ao uso da violência como meio de controle social pelo Estado». Quando clama por «relações igualitárias, solidá-rias e pacíficas entre as pessoas, raças, gêneros e po-vos...» e quando fecha a participação «aos que atentem contra a vida de pessoas como método de ação política». A Carta não alude, ainda assim, à reflexão «sobre os meios e ações de resis-tência e superação dessa domina-ção (do capital)...».
É intrínseca à mobilização cidadã ampla, por mais não-violento que seja o espírito convocatório, a possibili-dade sempre presente da provocação do poder, da con-frontação. E, mesmo que Florença 2002 — mais de um milhão de manifestantes na rua — e a mobilização anti-guerra de fevereiro-março provem as virtudes da massivi-dade, a militarização do Estado para frear o anti-Davos (janeiro de 2003) ou para criar obstáculos ao anti-G8 (junho de 2003 em Evian) expressam as contrafaces do poder e o risco da provocação sofisticada.
Risco que aumentará geometricamente com o passar do tempo e com a consolidação altermundialista. Já se contemplam os primeiros sinais do esforço dos grandes veículos da imprensa mundial e do grande poder político para deslegitimar e ameaçar o movimento que luta por outra globalização, de uma maneira ou de outra, com sua ilegalização. Identificar alter-mundialismo com terrorismo é uma estratégia cada vez mais comum por parte de muitos Estados.
Será um desafio da cidadania planetária — e Bombaim 2004 pode converter-se em no marco ideal para tanto – confrontar e derrotar esta tão perigosa como falsa sime-tria. A compreensão do FSM como processo anual e não como data única ou pontual pode constituir uma porta de saída para esse intento deslegitimador. Tão importante será Índia 2004 como o processo de preparação, disperso, amplo e estendido em diferentes cantos dos cinco continentes.
A saudável obsessão das alternativas
Se o diagnóstico sobre o estado atual do planeta e da lógica do sistema hegemônico constituiu, até agora, o eixo da reflexão no FSM, na Índia dever-se-ia começar a priorizar as alternativas viáveis à globalização neolibe-ral.
É imperativo que haja uma mudança de estratégia, uma readequação do esforço, uma nova organização da estrutura do próprio foro, uma redefinição temática. Em suma, começar a sistematizar de baixo para cima, do local ao global, a variada gama de experiências alternativas que já são aplicadas. Buscar os denominadores comuns. Expor suas potencialidades. Avaliar suas fraque-zas.
Mesmo ciente de que o sistema atual precisou de mais de dois séculos para se impor e que é inimaginável em quatro, cinco ou dez anos encontrar suas alternativas globais, a credibilidade se fortalecerá, à medida que a mudança possa ser provada, certificada, compartilhada, estendida e universalizada.
Várias atitudes deverão se auto-impor nesta busca. Em primeiro lugar, a convicção do movimento social planetário de sua própria capacidade propositiva. Em segundo lugar, o convencimento de que a grande alternativa ao sistema atual não será resultado de um passe de mágica, e sim da sistematização e acumulação de centenas e centenas de alternativas locais diferentes.
Mais ainda, a compreensão flexível dos tempos históricos. Ainda que ninguém possa exigir do movimento cidadão mundial uma alternativa finalizada em quatro anos de existência do FSM, também é certo que as víti-mas da guerra, da miséria crescente, da marginalização social e da destruição ecológica têm direito a expressar seu nervosismo (para não dizer ansiedade) e a exigência de mudanças rápidas à lógica dominante autodestrutiva.
Desta saudável obsessão por encontrar alternativas dependerá, no fim, a vigência do FSM que pode encontrar em seu novo rosto asiático um estímulo adicional de concretização, conclusões e universalidade.
Sergio FERRARI
Argentina-Suíza