Uma democracia mundial é possível

Uma democracia mundial é possível
Globalizar a política para democratizar a economia

Toni COMÍN


Nosso sonho de hoje, como Humanidade, é a cons-trução de um pacto social global justo: a construção de estruturas democráticas de governo mundial.

Nos últimos anos, os críticos do neoliberalismo têm lutado para, ao menos, restabelecer o equilíbrio entre mercado e Estado, entre capitalismo e democracia.

Mas para restabelecer esse equilíbrio, já que o capi-talismo se globalizou, é necessário construir estruturas e instituições de democracia também globais. É necessário globalizar a democracia: construir uma democracia cos-mopolita. Este foi um dos “leitmotivs” de parte dos participantes do Foro Social Mundial: reclamar o retorno da política.

No entanto, quando a globalização neoliberal revelou sua instabilidade intrínseca em forma de desigualdade econômica crescente e de alienação cultural das civiliza-ções não-ocidentais, os Estados Unidos, coração do mundo liberal-capitalista, saltaram do neoliberalismo para o imperialismo unilateral. A política voltou, sim, mas com a cara que menos esperávamos: através do imperialismo, que é pura política, porém baseada na superioridade militar. A política tem duas caras. E desta vez não voltou com a cara rousseauniana, que é a polí-tica da democracia, e sim com a hobbesiana, que é a política do medo.

Agora, em pleno unilateralismo bélico, é o momento de projetar essa democracia global que nos faz falta, para que o pacto social global esteja nas mãos da políti-ca, mas da política democrática, e não na dos mercados.

Deveríamos imaginar a Humanidade como uma implícita assembléia constituinte universal, com a finalidade de construir instituições que garantissem a todos os humanos, em condições de igualdade, os direitos que permitem levar adiante uma vida livre e, se possível, feliz. Como deveríamos reformar o sistema das Nações Unidas, para avançar em direção a uma democracia global?

O filósofo Michael Walzer explica que uma democracia global, que respeitasse o pluralismo social e cultural do mundo, deveria se apoiar em três pés:

a) Uma ONU fortalecida, mais democrática e com mais autoridade, mas que mantivesse seu caráter de organização inter-estatal (e não de super-Estado mundial)

b) Para contar no mundo, os Estados atuais poderiam agrupar-se em federações regionais, à maneira da União Européia. Só assim podemos imaginar uma geopolítica equilibrada, não polarizada pela hegemonia ocidental.

c) A sociedade civil mundial (ONGs, movimentos, redes, centros, partidos...) deve continuar exercendo o papel de “alma” da democratização mundial. Como fez no Foro Social Mundial, à maneira de um “parlamento mundial informal”, a sociedade civil global deverá impulsionar a consciência da opinião pública mundial. Pois, as instituições são somente o “corpo” da democra-cia, mas sua “alma” é a sociedade civil crítica e ativa.

Apoiando-se somente nesses dois pés — o regionalis-mo aberto e uma sociedade civil global mobilizada — será que é possível construir uma ONU democrática? Mas como deveria ser essa ONU democrática? Trata-se de recuperar, em escala global, a lógica dos Estados do bem-estar (nacionais) e de restabelecer a prioridade dos direitos sociais sobre os direitos do capital. Esta, e não outra, é a lógica da democracia.

Se olhamos para aquela parte do sistema da ONU que se encarrega dos assuntos econômicos e sociais, encon-tramos dois grupos de instituições: os organismos eco-nômicos e financeiros (FMI, BM, OMC) e as instituições do tipo social ou cultural (OIT, OMS, UNESCO, FAO, etc.).

As primeiras, têm poder, mas não são democráticas. As segundas, dispõem de legitimidade, mas carecem de poder político e capacidade financeira. Nossa utopia passa por dotar de legitimidade as instituições com poder, ou seja: democratizar o FMI, o BM e a OMC, a fim de colocar o crescimento econômico global a serviço dos países menos desenvolvidos e do bem-estar social da Humanidade, e por dar poder às instituições sociais.

1. O que deveria fazer um FMI democrático? A) Regular a livre circulação de capitais, para estabilizar os mercados financeiros e evitar as crises dos sistemas, como as que sofreram, na última década, países como o México ou o Sudeste asiático. B) Eliminar os paraísos fiscais. C) Penalizar a especulação financeira, com a Taxa Tobin ou outra medida semelhante.

2. O que deveria fazer um BM democrático? Se sua missão é a erradicação da pobreza, deveria estabelecer as bases de um sistema de redistribuição em nível global: um “sistema fiscal internacional”.

Como a Humanidade é incapaz de articular um siste-ma de solidariedade financeira Norte-Sul, capaz de redis-tribuir 1% ou 2% da riqueza do mundo para financiar os serviços sociais básicos do Sul, isto é, para salvar a vida das pessoas?

O que a UE faz com os Fundos de Coesão, deveria ser feito numa escala global. Esses “Fundos de Coesão Glo-bais”, financiados pelos países ricos, serviriam para financiar as infra-estruturas e serviços sociais básicos dos países pobres.

De fato, o 0,7% é um embrião, raquítico e insufi-ciente, desse sistema fiscal global. E propostas como a permuta da dívida por gastos sociais, ou a destinação da arrecadação da Taxa Tobin a investimentos sociais, res-pondem a essa mesma filosofia.

3. O que deveria fazer uma OMC democrática? Acabar com um sistema comercial mundial desigual, que procla-ma o livre comércio e só o aplica ao Sul. A hipocrisia dos países ricos em relação ao livre comércio é estrepitosa: “faça o que digo, mas não faça o que faço.”

4. Essas instituições poderiam integrar — ou se sub-meter ao controle político — de um Conselho de Segurança Econômica e Social (CSES), já previsto na Carta de Fun-dação da ONU, e jamais criado. Esse Conselho de Segu-rança Econômica e Social seria o contrapeso do atual Conselho de Segurança Política e Militar (CSPM). Além disso, o CSES poderia impulsionar um Tribunal da Dívida, para a remissão imparcial da dívida externa dos países pobres.

Que tarefa as instituições sociais e culturais da ONU deveriam realizar, se dispusessem de mais poder político e maior capacidade financeira? Regular a economia mundial, no que toca a questões sensíveis para o desen-volvimento e a justiça da sociedade global, tais como a saúde, a educação, a cultura, a alimentação ou o meio ambiente.

1. A OIT deveria ser capacitada a instaurar condições trabalhistas mínimas, de cumprimento obrigatório para todos os países e para todos os investidores estrangeiros no Terceiro Mundo.

2. A OMS deveria ter o direito de regular, de acordo com o direito à saúde, o atual sistema de patentes vinculado à indústria farmacêutica, que hoje depende exclusivamente da OMC.

3. Deveria ser criado um Conselho de Segurança do Meio Ambiente, encarregado de desenvolver o processo iniciado com o tratado de Kyoto, para promover um regulamento global e cooperativo dos limites ecológicos do crescimento econômico mundial.

4. A FAO deveria ter o direito de limitar o livre comércio, sempre que este afetasse a segurança alimentar dos países.

5. A UNESCO deveria proteger a diversidade cultural de um modelo de capitalismo global que, ao mesmo tempo em que incrementa as desigualdades, pressupõe uma poderosa força de ocidentalização dos países do Terceiro Mundo e das culturas tradicionais. O fundamen-talismo é, de certo modo, uma reação defensiva contra essa ocidentalização. A UNESCO deve cuidar para que o desenvolvimento econômico não homogenize cultural-mente o planeta, e para que o diálogo entre culturas nos imunize contra o fundamentalismo.

6. Vinculado à UNESCO, poderia ser estabelecido um Conselho Mundial das Religiões, que fomentasse o diálo-go inter-religioso, que mostrasse as religiões como uma força a serviço da paz e da justiça social mundiais, que impedisse sua manipulação política sob a lógica do choque de civilizações.

Outra grande área da ONU que deveria ser reformada, dentro de um código democrático, é a das instituições relativas à paz e segurança mundiais, para oferecer uma alternativa à atual ordem imperialista norte-americana. Imaginamos três pilares básicos para uma política mundial mais democrática:

1. A democratização do Conselho de Segurança (CSPM), para que reflita eqüitativamente o mundo, e não somente suas potências militares. O Conselho seria com-posto pelas federações regionais e por aqueles grandes países que, por si só, já são uma região do planeta: China, Índia, Rússia, União Européia, Mercosul, União Africana, Associação do Sudeste Asiático, Liga Árabe e Estados Unidos... Todos, não somente alguns, contariam com o direito de veto, expressão de poder neste foro.

2) O fortalecimento do Tribunal Penal Internacional, para avançar desde uma política mundial regulada pelas armas até outra, regulada pelo direito internacional democrático. O TPI poderia ser a sede de uma “polícia mundial”, que pouco a pouco fosse substituindo os exércitos na manutenção da paz e da segurança mundial.

3) Os exércitos das potências militares mundiais só pode-riam intervir no exterior a pedido, ou com autoriza-ção expressa, do CSPM, devidamente democratizado.

Um mundo global democrático poderia ser assim. Trata-se de uma visão utópica, sem dúvida... Filha desse mau costume, que a humanidade sempre teve, de sonhar com um mundo justo. E desse outro costume, também mau, de lutar por seus sonhos de justiça. De qualquer modo, falando em maus costumes, pior é a tendência da História de dar ouvidos à Humanidade, sempre que esta luta por seus sonhos.

 

Toni COMÍN

Barcelona