UMA PASTORA NO PRIMEIRO SÉCULO

 

Bartolomé Elmer Lavastida Alfonso

Sou Prisca, mas me chamam pelo diminutivo Priscilla. Meu marido Áquila e eu, agora vivemos em Éfeso e conduzimos em nossa casa uma das congregações domésticas que fazem parte da eclésia desta cidade1.

     Por dois sábados seguidos ouvimos na sinagoga, um irmão chamado Apolo vindo da Alexandria. Sua maneira de expor as Escrituras é impressionante: ele deixou maravilhados todos que o ouviram. No entanto, notei que havia algumas imprecisões em sua interpretação, que não estavam inteiramente corretas e, decidi convidá-lo à nossa casa para discutir com ele em particular esses pontos de vista2

Ao contrário do que se poderia pensar, foi uma experiência muito agradável, pois o jovem vem carregado com toda a sabedoria daquela importante pedreira da fé que é Alexandria, mas ao mesmo tempo, ele é uma pessoa humilde, disposto a aprender, com quem se pode dialogar.

     Ao aprofundar sua experiência de fé em Jesus, vimos que ele só havia conhecido o batismo de arrependimento de João Batista, o que possivelmente explique algumas das deficiências hermenêuticas que havíamos observado em sua exposição. 

Em um momento da conversa, Apolo me perguntou como consegui tanto conhecimento sobre a vida de Jesus, o relacionamento com as Escrituras Hebraicas e suas implicações atuais. Então eu tive que lhe contar toda essa longa história que começa em Roma, passa por Corinto e chega a Éfeso.    

     Áquila e eu reconhecemos Jesus como o Messias e nosso Senhor em Roma há alguns anos. Estávamos tão entusiasmados em proclamar nosso novo caminho, diante da rejeição da comunidade romana judaica que o imperador Cláudio nos expulsou de Roma, junto com outros judeus cristãos, alegando que estávamos criando distúrbios3.

Uma longa viagem de barco nos trouxe  a Corinto e, diante das difíceis circunstâncias dos refugiados, nós conseguimos nos estabelecer economicamente, graças ao nosso comércio de fabricação de tendas (skenopoios). E justamente naquele momento angustiante de recomeçar a vida em uma cidade tão complicada quanto Corinto, Deus nos enviou ao missionário Paulo para compartilhar com ele a casa e o trabalho. Como a maioria dos rabinos, além de ser um pregador de excelência, Paulo é um especialista no ofício de fazer tendas e, propôs não dependermos das ofertas das congregações às quais ele ministra4.

Isso nos deu a magnífica oportunidade de beber nesse profundo conhecimento de Paulo das Escrituras e, sua nova interpretação à luz da vinda de Jesus. Por horas, enquanto nossas mãos se moviam costurando as peças de couro, nossas mentes se alargaram e nossos corações pulsavam de emoção. Sem perceber, Deus nos preparou para esse tipo de trabalho missionário, que agora fazemos em Éfeso. Não posso deixar de mencionar outro fator importante em nosso desenvolvimento, o fato de que Paulo teve que abandonar sua pregação na sinagoga de Corinto, por conflito com os judeus e, começar a se reunir na casa de Tito Justo, um gentio que adorava a Deus e vivia ao lado da sinagoga5.

A forma do culto começou a mudar, dando mais oportunidades para o diálogo, e especialmente para a participação das mulheres, como eu6. Parece-me que essa foi uma solução muito sábia para harmonizar as novas práticas do Caminho com as tradições judaicas, sem minar nenhum dos dois7. Nesse ambiente da igreja doméstica, as imitações patriarcais de ambos os romanos (paterfamilias) e judeus são superadas, e nos sentimos um corpo único em Jesus8. Devo admitir que o temperamento de Áquila é mais tranquilo, enquanto eu articulo mais facilmente em público.

Talvez seja por isso que em várias ocasiões foi me dada a oportunidade de conduzir a reflexão sobre as Escrituras9 e, me senti muito feliz nessa experiência. Fomos crescendo nesse ministério de expor as Escrituras, até estarmos à frente daquela célula cristã em nossa casa.

Talvez a origem alexandrina de Apolo tenha lhe dado uma maior abertura ao Caminho de Jesus Cristo. Aqui na Ásia Menor e na Acaia, este momento de transição da sinagoga às congregações domésticas, produziu seus conflitos entre irmãos e irmãs de origem judaica e os que são gentios. Em Corinto, por exemplo, eles nos levaram diante de Gálio, o procônsul da Acaia, acusando-nos de ir contra a lei romana. Felizmente, porém, Gallio ignorou a acusação e encerrou a sessão sem consequências para nós10.

Ficamos muito satisfeitos quando Paulo nos convidou a viajar com ele a Éfeso e continuar aqui o ministério pastoral que estávamos realizando em Corinto. Este diálogo com Apolo e, a sua compreensão e aceitação dos nossos esclarecimentos de interpretação das Escrituras, o prepararam para continuar o seu ministério na igreja em Corinto11. para onde se dirigiu com uma carta de apoio que assinamos alguns líderes da eclésia de Éfeso12.

     Eu não imaginei que a situação em Éfeso se tornaria tão tensa e complicada. Descobrimos que, nesta cidade da Ásia Menor, o fato de não ser um porto e ser a sede do culto a Diana, a deusa da fertilidade, criou estruturas sociais e condições econômicas muito diferentes daquelas em Corinto.

No meio dos tumultos fomentados pelo grêmio de artesãos liderado por Demétrio, tivemos que arriscar nossa própria segurança para que Paulo13 e outros dos discípulos da congregação, que se reúne na escola de Tiranno não fossem prejudicados.

    Em sua imensa misericórdia, Deus permitiu que o problema fosse resolvido pela intervenção dos assírios, o procônsul e da  assembleia da cidade e Éfeso ficasse em paz.

Enquanto Paulo continua seu ministério itinerante em toda a região da Ásia Menor, Áquila e eu continuamos a fazer nosso trabalho de ensino e pregação aqui em Éfeso. Talvez num futuro não muito distante, possamos retornar ao nosso lugar de origem, Roma, visto que já existe outro imperador, Nero, e alguns dos judeus que tiveram que sair conosco já regressaram e não têm problemas.

É um privilégio saber que Paulo nos considera seus colaboradores (sunergon). É um sinal de que o novo Caminho em Jesus, marca um novo ponto de partida na posição da mulher na sinagoga e do templo. Que Deus permita que essas portas continuem se abrindo até a plena manifestação de Suas filhas e filhos.

Notas: 1 I 1Cor 16: 19 | 2 Atos 18: 24-26 | 3 Elizabeth Schusler Fiorenza, In Memory of Her, Desclée, 1989, p. 229. | 4 Há evidências históricas de rabinos como Shammay, Hillel, Yojanán ben Zakkay... que ganhavam a vida, enquanto praticavam como rabinos. Joachim Jeremias, Jerusalém no tempo de Jesus, Ed. Cristiandad, Madri. 1985, p.132. | 5 Atos 18: 7 | 6 Schusler, ib., P. 228. | 7 Robert W. Wall, New Interpreter's Bible, Abingdon, 2002, p. 252. | 8 Gal 3: 28 e Schusler, ib., P. 229. | 9 Paratitemenos, em grego, At 17: 3 | 10 Ac 18: 16 | 11 I 1Cor 16: 19 | 12 Atos 18: 27,28 | 13 Rm 16: 3