URGENTE: UMA NOVA VISÃO E UMA NOVA ESPIRITUALIDADE PARA SALVAR A TERRA

 

José María Vigil

As principais causas, tanto da gênese da crise ecológica atual, quanto da resposta inadequada que a humanidade está dando (por omissão), parecem ser estas três:

  • o sistema econômico e de produção, egoísta, explorador e depredador, que a espécie humana deu a si mesma. Carrega uma dinâmica perversa poderosa de depredação do meio ambiente e de exploração dos grupos humanos; dinâmica que, com as imensas capacidades tecnológicas atuais, nos conduz aceleradamente ao desastre ecológico.
  • uma visão e uma cultura dominantes que legitimam esse sistema civilizacional depredador do meio e explorador da humanidade menos favorecida;
  • a falta de qualidade humana, em nível pessoal e coletivo, que leva à incapacidade para perceber a perversidade desse sistema, assim como a lentidão para reagir, deter e superar esta situação. O que nos falta: informação, consciência, sensibilidade, vontade, espiritualidade, qualidade humana profunda...?

Diante da primeira causa, necessitamos militância política para transformar o sistema. Da segunda, precisamos de uma visão nova e, em maior escala, uma autêntica revolução cultural. Para a terceira, necessitamos de uma nova espiritualidade.

  1. Transformar o sistema de vida disfuncional que está em guerra com o planeta

A partir do século XVI, estendeu-se, por todo o mundo, o sistema capitalista, atualmente em sua fase neoliberal e financeira mundializada, que gera uma dinâmica perversa de depredação e de desigualdades. Ultrapassou amplamente seus próprios limites e, atualmente, cavalga selvagem a um ritmo de consumo que exigiria vários planetas para sustentá-lo. O ritmo do dano que infligimos ao planeta não deixou de crescer, no entanto, não conseguimos concordar em reduzi-lo, muito menos em detê-lo.

      O diagnóstico moral detecta a raiz deste mal no fato de que o ser humano colocou seus direitos acima dos do planeta e das outras espécies vivas. Com isso, o ser humano tornou-se um ser disfuncional, que leva a biosfera à asfixia e arrasta toda a comunidade da vida ao desastre climático.

      O Planeta já está reagindo, pois, seja dentro da “autorregularão do sistema de Gaia, ou, como simples consequência do efeito estufa, principalmente, está em processo de aquecimento, que acabará por destruir a espécie que o causou. O processo JÁ está em andamento, e dificilmente seremos capazes de desacelerar, muito menos pará-lo. Temos que ser realistas, considerar quais são as próximas etapas deste processo, e preparar-nos para a chegada dos cenários previstos. Vem um período de grandes sofrimentos. Boa parte da humanidade perecerá, mesmo que seja compreensível que a Vida e o Planeta se recuperarão, depois da extinção de muitas espécies. Provavelmente, outra espécie tomará nosso lugar evolutivo, em uma forma harmoniosa para com o planeta e com a biosfera. Ou, talvez, nós mesmos evoluamos para essa outra nova espécie que precisamos ser.

      Necessitamos de um sistema focado na promoção do bem estar do planeta, na promoção da vida, de todos os seres vivos, da humanidade como conjunto, de seu Bem Viver e Conviver. Não existe uma “demo-cracia” nem uns “direitos (somente) humanos”; há uma bio-cracia e um respeito a “todos os direitos”, também os humanos, os direitos de todos os seres vivos e da Mãe Terra que os torna possíveis. O mais importante e urgente seria incorporar-nos à mesma, adotando uma revolução cultural que nos faça co-pilotar com Gaia a superação desta crise de sobrevivência. Somos co-protagonistas da grave crise que a Vida atravessa no planeta. De como nos comportamos, depende se podemos superá-la – se é que ainda estamos a tempo – ou perecer nela.

      No momento, nossa grande tarefa é acompanhar essa Grande Transformação urgente. Precisamos de uma nova teologia para uma nova visão, radicalmente diferente, com bases mais amplas e em novos pressupostos, coerentes com a realidade. A Humanidade continua a governar-se atualmente com a inércia genética ancestral de sua espécie, comum a muitas outras: lutar pela sobrevivência a qualquer preço, a lei da selva ou a lei do mais forte.

      Nossa espécie necessita de uma nova “visão” que se abra a uma empatia profunda com toda a comunidade planetária da vida, dê a ela um sentimento de pertença e freie seu potencial destrutivo.

 

  1. Superar uma visão do mundo e da natureza que nos prejudica
  • Para a velha visão, a matéria é a metade visível da realidade, moralmente depreciável, inferior às realidades “espirituais”. Diante dela, a atitude humana é de domínio e usufruto: são simplesmente “recursos naturais”.
  • Para a nova visão, na verdade, “a matéria não existe”. A matéria, simplesmente, é energia, em um de seus estados. A física quântica nos fala das partículas que, ao mesmo tempo, são ondas, e que nos deixam na incerteza sobre seu comportamento. Nos níveis subatômicos, está o “vazio quântico”, uma incessante dança de energia primordial, como uma sopa cósmica da qual tudo brota (uma “boa metáfora de Deus”, segundo Boff).
  • A velha visão imagina a realidade dividida em dois níveis bem diferenciados, dois andares: este nosso, no qual nos movemos, e outro nível superior, o mundo do ser (metafísica), do espírito (sobrenatural), de Deus. Ao primeiro andar corresponde o material, o terrestre, o corruptível, o sexual, o pecado... Corresponde ao segundo nível o espiritual, o celeste, o eterno, o bem, o racional, a santidade. Como “corpo e alma”, o ser humano participa dos dois níveis, porém sua verdadeira essência é sua alma sobrenatural.
  • Para a nova visão, não há dualismo no mundo, não há dois andares nele, e o ser humano não está em um nível superior ao das coisas e seres vivos deste mundo. Todos formamos a única realidade, que se faz em diferentes níveis simultaneamente, e que configura diferentes formas e entidades, porém, que não permite olhar “de cima” as coisas e criaturas terrestres como inferiores, passageiras, pecaminosas... Tudo é natural e sobrenatural ao mesmo tempo. Até a espiritualidade é natural.
  • Para a velha visão, o ser humano foi criado diferente de todo o resto da criação, à imagem e semelhança de Deus.
  • Para a nova visão, não fomos colocados neste mundo vindo de fora, mas brotamos nesse mundo, somos fruto de seu processo evolutivo, vimos de dentro dele.
  • Na velha visão, o cosmos e a Terra são somente o “cenário” no qual a vida humana se desenvolve. Neles somos os protagonistas, os únicos sujeitos; os demais são meros objetos. Somos apenas os humanos, em meio de um cosmos de astros, planetas, plantas, animais e rochas.
  • Na nova visão tudo é diferente. Não existe tal abismo entre nós e o que nos rodeia; pelo contrário, há uma profunda continuidade e comunhão. Somos parte do cosmos, somos cosmos também. Nosso corpo está feito dos mesmos elementos, está constituído por átomos que em outro tempo estiveram em outros corpos, humanos e não humanos. Somos “pó de estrelas”. Em nós, a Terra e o cosmos tomam consciência, eles se contemplam... Pertencemos à Terra, somos parte viva da Gaia viva, totalmente interdependentes com ela. Nesta visão, já não nos sentimos estranhos, diferentes, nem superiores.
  • Na velha visão há também um abismo de separação entre a espécie humana e o resto da vida no Planeta, os animais, as plantas... Como se fôssemos feitos de uma natureza diferente ou melhor.
  • Na nova visão, num sentido biológico, somos uma espécie mais. De fato, os atuais humanos, somos um animal vertebrado da classe dos mamíferos, da ordem dos primatas, da família dos hominídeos, do gênero homo, da espécie sapiens. Somos parte de uma mesma e única “Comunidade da Vida”, e dependemos dos ecossistemas nos quais nossa espécie surgiu. De fato, nossa carne é feita das mesmas 14 bases nitrogenadas que constituem toda a matéria viva e, no núcleo de cada uma de nossas células, está escrita nossa informação genética na mesma linguagem DNA que o de todas as espécies vivas. Nosso corpo carrega em si as marcas da evolução biológica.
  • A velha visão, mesmo em suas versões seculares, coloca na frente o caráter sobrenatural do ser humano. Não seríamos seres meramente naturais. O ser humano seria um ser superior, por causa de sua alma, o que lhe daria seu caráter espiritual.
  • Na nova visão, não há nada fora da natureza, não há um segundo andar superior “espiritual”. O que chamamos de “espiritual” só pode ser uma dimensão da mesma natureza. A matéria é autopoiética, auto-organizadora, “emergente”, e tende à organização, à complexidade, e é daí que surge a consciência, a autoconsciência, o que chamamos espírito. É a mente, que não está em outro andar, nem vem de outro mundo, mas está na matéria organizada, em sua intensidade maior de complexidade, e que aparece como consciência. A cultura nada mais é que o prolongamento da evolução biológica no ser humano. A espiritualidade é, então, muito natural: “faz parte da natureza”. A natureza é espiritual, e a espiritualidade é natural.
  • Na velha visão, nos sentimos, sobretudo, como sujeitos individuais, separados de tudo, de todos e do todo. E olhamos tudo de uma forma reducionista, que tenta reduzir tudo às partes em que se pode dissecar a realidade (reducionismo, mecanicismo, dualismo, separatividade...)
  • Na nova visão, holística, nos sentimos parte “do todo”, membros de uma coletividade, vinculados, interdependentes. E sabemos que o todo é maior que a soma de partes, do fundo de nós mesmos estamos vinculados, somos interdependentes e, portanto, estamos marcados e influenciados por essa “totalidade”, diferente da mera soma de partes.

 

  1. C) Precisamos também de uma nova espiritualidade, de acordo com esta nova visão

Ao mudar nossa visão do mundo, nós o percebemos de forma diferente e, com isso, reconfiguramos nossas empatias e nossos valores. “O que os olhos não veem, o coração não sente”; mas também o contrário: “olhos que olham com penetração lúcida, coração que sente outros sentimentos e que vibra de outro modo”. Enquanto não mudarmos a visão antiga, seremos privados dos valores e inspirações de que precisamos atualmente, no auge do desenvolvimento cognitivo que formamos. É urgente possibilitar e recriar em nós um novo sentir, uma nova sensibilidade, empatia, inspiração, espiritualidade, religiosidade, sentido do sacro... que nos reconcilie com este planeta e nos faça   viver, consequente e felizmente, como o que somos, como Gaia.

            Algumas dessas novas reviravoltas, urgentes, podemos apresentar esquematicamente assim:

Reconsiderar o teísmo, o qual implicaria:

  • Tomar consciência de que o teísmo tradicional é simplesmente um modelo de compreensão; que a humanidade já teve, no decorrer de sua história, vários modelos, e que é legítimo e necessário fazer um discernimento sobre eles.
  • Superar o teísmo do theos grego, desabsolutizar o deus-pessoal, externo ao mundo, do segundo andar, interventor sobrenatural e absoluto.
  • Relativizar o caráter pessoal-humano de Deus (o antropomorfismo), considerado tradicionalmente como imprescindível em nossa relação com o Mistério, tanto na visão oficial do cristianismo, como na popular. Abrir os olhos espirituais do povo simples, fazendo-o capaz de encontrar a Divindade, sem considerá-lo, de fato, um ser antropomórfico, um “tu com quem dialogar”, um “amigo invisível”.
  • Reposicionar a “Divindade” na realidade, na única realidade, na natureza cósmica. Captar a dimensão/presença do divino no cósmico e natural, a sacralidade do profano e da natureza.
  • Abrir-nos cada vez mais ao posteismo, na forma de pan-em-teismo espiritual, de reverência da sacralidade do Mistério presente na realidade cósmica e total. A velha polêmica teísmo/ateísmo tornou-se obsoleta, já superada.
  • O modelo de theos-deus, interpretado de modo literal, como um ser ontológico, se torna um cânone de interpretação hierárquica de toda a realidade, colocando tudo a serviço do ser humano, desprezando o não-espiritual, o não-pessoal, o não-masculino. Podemos continuar utilizando a imagem “deus-theo” para expressar-nos em espiritualidade, porém, com a condição de manter a distância crítica de saber que, na verdade, é um símbolo.
  • O Deus antropomórfico pensa, projeta, faz o plano, decide, põe em movimento, se desgosta, fica bravo, condena, ameaça, castiga, se reconcilia, intervém, se retira, diz, faz, pergunta, manda, faz milagres, concede, escuta, responde, diz, revela, fala... Não são demasiados verbos  antropomórficos os que aplicamos a esse Deus? Deus não pode ser pessoal, mas mais do que pessoal, supra pessoal, talvez transpessoal... E podemos imaginá-lo como pessoal se nos serve, porém sabendo que isso é apenas uma facilitação metafórica.
  • Deus não pode ser Senhor, porque somente se pode ser Senhor numa realidade estruturada a partir da dominação, a partir da hierarquização. Teilhard acreditava que uma mudança exigida pela cultura atual era que Deus deixasse de ser esse não apresentável “proprietário neolítico do mundo”...
  • A perspectiva feminista (Ivone Gebara) descobre, no teísmo, a projeção do desejo masculino de poder.

       Reconsiderar o estatuto espiritual do cosmos, da natureza e da ciência:

  • Assumir a nova imagem da natureza, da matéria e do cosmos que a nova cosmologia e a nova física, as novas ciências, em geral, nos proporcionam.
  • Superar o conceito clássico de “criação do mundo” por parte de um Deus externo a ele.
  • Redescobrir a presença e a identidade do Mistério (o divino, a Divindade) na realidade cósmica e natural. Reconhecer/perceber a sacralidade da natureza. Reencontrar a Deus (também) na natureza – assim como o cristianismo nos tornou tão sensíveis à presença de Deus no ser humano.
  • Abrir-nos à consideração não panteísta, mas, sim, simbolicamente real da natureza como o “corpo de Deus” (não menos ortodoxo que o “corpo místico de Cristo”).
  • Desapegar-nos do modelo de Deus masculino, exterior, dominador, justificador do domínio antropocêntrico do ser humano sobre a natureza, e reconhecer que a Divindade está na natureza, animando-a de dentro.
  • Devemos voltar ao nosso lar (homecoming), voltar a uma espiritualidade oiko-focada, reorientada de novo na realidade, na vida, na natureza, no planeta, em Gaia, no cosmos...
  • Neste sentido, é urgente que as religiões voltem seu olhar ao estado atual das ciências, que servem hoje como nova “revelação”, manifestação dos sinais da presença do Mistério, que os homens e mulheres de hoje buscam com maior sintonia.

Caminhemos para uma espiritualidade que não nos aliene, ou seja:

  • Que não instale em nós a subvalorização da realidade cósmica e natural;
  • Que nos permita viver focados em nossa casa, na natureza, superando, radicalmente, o antropocentrismo, o humanocentrismo e o teocentrismo tradicional;
  • Que nos permita recuperar o amor e a empatia pela natureza;
  • Que nos permita reconhecer o mundo habitado por Deus;
  • Que faça ler “o Livro” divino da realidade, do cosmos... e da ciência, como revelação ...
  • Que não nos permita depredar a Terra, desprezá-la, tratá-la como mera despensa de objetos inferiores, desabitada, sem sacralidade..., mas, sim, senti-la como nosso espaço sagrado, nossa placenta espiritual;
  • Com tal espiritualidade, é muito provável que a humanidade dê, a tempo, a volta à mudança, à grande transformação, tão urgente, que precisa fazer, para passar de uma civilização industrial, conquistadora, extrativa e destrutiva, irracionalmente focada no lucro massivo e de curto prazo, à custa da destruição da natureza e o envenenamento das relações humanas, a uma nova civilização, a favor da vida e do planeta, da humanidade e da fraternidade.

Como declarou a EATWOT: “somente deixaremos de destruir a natureza quando descobrirmos tanto sua dimensão divina, quanto nosso próprio caráter natural”. A solução para o problema mais grave que a Humanidade tem, agora, passa, principalmente, pela urgência de adotar “uma nova visão e uma nova espiritualidade”.