Valentes e acompanhadas: combatendo o matrimônio forçado
Valentes e acompanhadas: combatendo o matrimônio forçado
Carme Vinyoles
Havia completado vinte e um anos, estudava num grau superior na cidade catalã, onde nasceu, e com seu namorado começava a dar forma aos sonhos de futuro. Agia com cautela, sabia que para a família seria uma grande surpresa, difícil de aceitar, e queria prepará-los bem. Não teve oportunidade. Seus pais nunca conheceram o rapaz de quem se havia enamorado. Na realidade, eles já tinham os próprios planos, planos dos quais não lhe haviam informado, apesar de ser a protagonista principal. Num dia ruim, ao regressar do instituto a apresentaram a seu marido: um “velho magro” a quem nunca tinha visto, pertencente à mesma etnia. O matrimônio estava selado, não havia como voltar atrás. A princípio não conseguiu reagir. Casada a força? Ela? Impossível! Se estava se preparando para ingressar na universidade, se amava outra pessoa, se ninguém a havia posto de sobreaviso?! De repente, sua vida ia ao espaço.
Desgraçadamente é a pequena síntese de um caso real, não uma “anedota isolada”. Pelo contrário, faz parte de uma das práticas tradicionais nocivas mais propagadas em algumas regiões dos cinco continentes: o matrimônio forçado (MF), com frequência também infantil, atavismo cultural que costuma ser ocultado no âmbito da privacidade doméstica, deixando as vítimas em situação de absoluto desamparo. Desta forma o reconhecia em 2013 Desmond Tutu, Nobel da Paz: “Pensava ter uma ideia precisa do panorama dos Direitos Humanos (DDHH), porém confesso que não estava consciente da magnitude do impacto do matrimônio infantil. Agora compreendo que essas meninas são invisíveis, que não têm voz, e isso as torna as pessoas mais vulneráveis e desprovidas de direitos do planeta”.
Na realidade, a tomada de consciência em nível internacional para erradicar o MF é imprescindível, a estas alturas do percurso da Declaração Universal dos DDHH, que proclama a igual dignidade de toda pessoa pelo simples fato de ser pessoa, sem que haja qualquer discriminação por motivos de raça, sexo, língua, fortuna etc. Além de compartilhar a formulação da lei, podemos imaginar a violência íntima e o suplício que padece uma menina, uma adolescente, ou uma jovem, ao ser entregue em matrimônio contra o seu desejo e sem escapatória possível. São negados a capacidade, o direito e a responsabilidade de escolher, uma vez adulta, o seu próprio caminho e, portanto, despojado do principal valor que a constitui: sua plena humanidade. Trata-se de uma ferida atroz que interpela, compromete e fere o desenvolvimento moral e econômico de todas as sociedades nas quais se leva a cabo essa prática. Desmond Tutu advertia: “Chegou a hora de abrir os olhos e tomar medidas valentes para a prevenção”.
Além disso, há de ser levado em conta que a incidência mundial do MF não é insignificante. Segundo dados da UNICEF, há atualmente 700 milhões de mulheres casadas antes de completar 18 anos (250 milhões delas, 6,8%, antes de completar os 15). Se a tendência não for revertida, a ONU calcula que em 2020 mais de 140 milhões de meninas ou jovens de 15 a 19 anos serão acrescentadas à fatal estatística. Tampouco é fútil a sua representação geográfica, visto que, com diferentes variantes e intensidades, abrange países de praticamente todos os continentes: do Norte da África, da África Ocidental e Central, do Oriente Próximo e Oriente Médio, da Ásia Meridional, da América Latina, do Norte da América, da Europa…
O que se entende como Matrimônio Forçado? A união de duas pessoas na qual pelo menos uma delas – geralmente a mulher – não outorgou seu pleno e livre consentimento, mas foi física, sexual, psicológica e emocionalmente coagida pela família e por seu entorno mais próximo. E essa casuística tanto se dá se a “noiva” é menor (e então falaríamos de matrimônio precoce ou infantil) como se é adulta, já que as formas de pressão, realmente duras, não atendem a motivos de idade, mas a conseguir o objetivo buscado. Em sociedades firmemente estruturadas, segundo a concepção imobilista da tradição, conforme as normas inapeláveis da transmissão da linhagem e do respeito absoluto à autoridade dos mais velhos e segundo a apropriação da “honra” da mulher como garantia do prestígio de todo o grupo, o matrimônio não é considerado opção pessoal, mas um pacto de família, de interesse para toda a comunidade, que permanece unida com o propósito de manter a ordem estabelecida. Então, há pouco espaço para a dissidência. A rebeldia é castigada com rejeição e a segregação, estigma que dizima gravemente as possibilidades de sobrevivência. A vítima sofre um elevadíssimo grau de vulnerabilidade e indefensabilidade, que na prática impede toda possibilidade de fugir do destino marcado.
Como resultado da luta perseverante – nem sempre reconhecida – de muitas mulheres ativistas na defesa dos DDHH, finalmente o Matrimônio Forçado conseguiu entrar em cena internacional com seu próprio nome. Entrou pela porta grande, poder-se-ia dizer, a porta do “Livro-Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável”, aprovada pela ONU em setembro de 2015, que inclui 17 objetivos para acabar com a pobreza, vencer a desigualdade e a injustiça e fazer frente à mudança climática. No objetivo número 5 (igualdade de gênero e empoderamento de mulheres e crianças) figura o acordo de eliminar todas as práticas nocivas como o matrimônio infantil, precoce e forçado, e a mutilação genital feminina. É a primeira vez que se refere a isso com tanta contundência e que se identifica o MF como causa e efeito de desigualdade entre homens e mulheres, e de empobrecimento. Causa, porque se inscreve em um sistema de relações e de poder patriarcal baseado na submissão da mulher aos desígnios do pai, do marido, do grupo. Resultado, porque ao reduzir a mulher a um rol basicamente doméstico, diminui as oportunidades de educação e de autonomia e limita ou anula a participação na tomada de decisões e contribuição ao progresso coletivo. Quando as vozes mais reivindicativas gritam a plenos pulmões “dá-nos livros, não maridos”, os governos deveriam perceber a estreita vinculação entre o direito à educação das mulheres e o respeito à liberdade e integridade física e emocional, com as mudanças indispensáveis para a transformação das condições de vida em benefício de toda a sociedade.
Nos Estados Unidos, na Europa, na América Latina do século XXI, o Matrimônio Forçado está presente por causa dos movimentos migratórios das últimas décadas e representa séria ameaça às filhas de determinados coletivos procedentes de zonas nas quais impera a tradição. Diferentes associações de mulheres trabalham em rede com outras associações dos países de origem para gerar consciência, mover mentalidades e proteger as meninas e jovens em risco. Passos estão sendo dados, progressivamente, para combater o que cabe identificar como intolerável manifestação de violência comunitária, que não pode ser justificada sob nenhum argumento, menos ainda de tipo cultural. Estamos diante de um debate complexo que contém um ponto de partida evidente: uma cultura se mantém viva enquanto é capaz de evoluir, de cuidar e enaltecer os valores que a enriquecem e eliminar as práticas que se demostraram prejudiciais aos direitos das pessoas, ao próprio progresso e desenvolvimento humano em geral. É um debate que há de explicar com urgência, porque está crescendo uma geração de meninas e jovens que sonham em viver em condições de igualdade, e porque em função do que acabe acontecendo com elas, o mundo desenhará sua fisionomia.
Na Catalunha, a partir dos anos 80/90, arraigou uma importante fornada migratória composta por famílias com seus filhos. Em 2014, entrou em funcionamento o projeto pioneiro Valentes e Acompanhados, que trabalha para prevenir os MF por meio do empoderamento formativo/laboral e emocional/psicológico das adolescentes e jovens em situação de risco, estabelecendo mecanismos de atenção integral e sustentada, que permitam enfrentar o conflito familiar sem renunciar à liberdade. O trajeto percorrido deixa evidente o acerto do lema: é realmente imprescindível um efetivo e afetivo apoio de diversos níveis para as vítimas da crua situação adquirirem força e ânimo para resistir. A jovem, à qual nos referíamos ao começar este texto, não aceitou o marido imposto, recebeu acolhida e terapia emocional, ingressou na universidade, tem previsão de compartilhar apartamento com seu namorado e está apoiando adolescentes em risco. Foi valente e encarou a situação para decidir sobre a sua vida, e obteve acompanhamento. Porém, há muitas outras que sofrem na solidão a pressão do grupo e no final não podem aguentar e cedem. Perdem-se e perdemos com elas seu potencial, sua formação, sua contribuição ao bem comum. A defesa de seus direitos é um compromisso essencial para a defesa dos Direitos Humanos.
Carme Vinyoles
Sils, Girona, Catalunha, Espanha