Visitando “casas” com Jesus

Visitando “casas” com Jesus

Sandro Gallazzi


A encíclica “Laudato sí” de Francisco, fruto da participação de muita gente, está contribuindo para que as expressões “casa comum” e “ecologia integral” sejam usadas com maior frequência nas nossas comunidades e também na sociedade. Francisco nos alerta que cuidar da casa comum não é só cuidar da natureza. É preciso cuidar para que nossa sociedade se torne uma verdadeira “casa comum” onde todas e todos possamos viver ao redor da mesma mesa, repartindo entre todos os bens que a natureza nos regala.

Nesta perspectiva, queremos refazer com Jesus o caminho que o levou a lugares que carregam no próprio nome a palavra “casa”, em hebraico “bet”.

a. Belém (Bet-lehem): a casa do pão (Lc 2,1-19)

Era lugar de memórias antigas, guardadas, sobretudo, no livro de Rute, a moabita, a bisavó de Davi. Memórias de mulheres camponesas oprimidas pelo império e pelo templo de Jerusalém. Nos falavam de um projeto de sociedade sem discriminação que garantia a todas e a todos o direito à terra, ao pão e aos filhos. Lugar de gente pobre, habituada à dura luta pelo pão de cada dia. A palavra lehem/pão vinha do verbo laham que significava comer, mas, também, lutar, combater. Lugar de pastores, primeiros destinatário do anúncio de vida, vindo dos anjos do céu; lugar onde voltou a brilhar a estrela que tinha apagado na Jerusalém dos reis e sacerdotes. É por isso que Lucas chama Belém “cidade de Davi”. Cidade de Davi não é Jerusalém, como sempre foi chamada nos demais textos bíblicos. Cidade de Davi é Belém, do Davi pobre, do Davi pastor, do último dos filhos, esquecido pelo próprio pai.

A primeira casa de Jesus foi um estábulo, sua primeira cama uma manjedoura. Jesus nasceu na casa do pão, nasceu pobre, entre os pobres e aos pobres ele permanecerá fiel até à morte. O nosso Deus é um pobre que irá fazer do pão sua memória viva e o alimento da nossa casa.

b. Betsaida: a casa da pesca (Mc 6,30-52; 8,1-33)

Betsaida era a casa de Pedro, André e Filipe, os primeiros a seguir Jesus. Não há pescadores no primeiro testamento: era trabalho impuro. E entre os pescadores Jesus chamou os companheiros para lutar contra o mar, força simbólica de todos os males. Vamos “pescar gente”, libertá-los do poder do mar opressor. Assim, no deserto de Betsaida, Jesus ensina como vencer o mar: organizando o povo e repartindo entre todos os poucos pães e peixes que temos. Depois da lição dos pães, Jesus nos obriga a enfrentar o mar, sem medo, com a mesma coragem dele que sobre o mar caminha. Se, porém, no nosso barco, guardamos ainda o “fermento dos fariseus”, o medo tomará conta de nós e o Jesus que nós anunciaremos será só um “fantasma”, uma fantasia inútil e alienante. Em Betsaida, então, Jesus vai abrir os nossos olhos, como abriu os olhos do cego, símbolo de todos os discípulos. Na casa da pesca saberemos que o caminho do discípulo é o mesmo de Jesus: precisa ir a Jerusalém e enfrentar a morte. Como Pedro, o pescador de Betsaida, nós também saberemos que não basta crer no Cristo de Deus; precisamos seguir o filho do homem que vai dar a vida: “fica atrás de mim, Satanás”!

c. Betesda: a casa da misericórdia (Jo 5,1-18)

Há trinta e oito anos o paralítico esperava que alguém o carregasse e o jogasse dentro da piscina para ser curado. Mas o anjo descia de sábado e, no sábado, ninguém podia carregar pesos. E o pobre se arrastava, sozinho, sem nunca conseguir chegar por primeiro. A casa da misericórdia tinha sido inutilizada por uma lei que os sacerdotes e os escribas tinham manipulado para seus próprios interesses. “Carrega o teu estrado e anda”. Os homens da lei não conseguem enxergar a maravilha de um paralítico que, depois de 38 anos, voltou a caminhar. Eles só conseguem ver uma pessoa que não cumpre a rígida lei do sábado. “Aquele que me curou mandou carregar e eu carrego!” O homem não conhecia Jesus, mas reconheceu a autoridade de quem foi misericordioso com ele. A lei só faz sentido a serviço da misericórdia; não foi feita para controlá-la e regulamentá-la. “Meu Pai trabalha sempre (...) Por isso os judeus procuravam matá-lo, porque além de violar o sábado, chamava Deus de Pai, fazendo-se igual a ele” (Jo 5, 17-18).

d. Betfagé: a casa dos figos (Mc 11,1-26)

É sobre o jumentinho da casa dos figos que Jesus quer entrar em Jerusalém. Diante e atrás dele tem gente clamando: “Hosana!”. É grito de quem não aguenta mais, de quem está na dor e na miséria. Depois, Lucas transformou este grito numa aclamação de glória, de triunfo e nós acabamos esquecendo que “hosana” era, na origem, uma súplica intensa pela misericórdia do salvador: “Socorro; socorro, por favor!” “Bendito o reino que vem, o reino do nosso pai Davi”. Às portas de Jerusalém, a multidão estava ecoando o grito que tinha saído da boca do cego Bartimeu: “Jesus, filho de Davi, tenhas compaixão de mim”. De boca em boca este grito cresceu até às alturas, até incomodar os sacerdotes: “Manda que se calem!”. Tarde demais. Na casa dos figos a comparação veio fácil: o templo é uma figueira que nunca vai chegar a dar fruto. De lá saem folhas, até bonitas de ver, capazes de nos enganar, mas os frutos nunca vão sair. Nunca vai chegar a estação dos figos. O templo não é a casa da salvação, não é a casa da misericórdia, não é a casa da vida; é covil de ladrões. Seja, então, amaldiçoada esta figueira inútil! Basta um pouquinho de fé para ter a coragem de enfrentar “este monte”, com a certeza que o monte do templo, do palácio, do quartel e do mercado será jogado nas profundezas do mar.

e. Betânia: a casa dos pobres (Mt 26,1-16; Jo 12,1-3)

A casa dos pobres foi “a” casa de Jesus! Esta casa guarda memórias significativas de mulheres, memórias de vida, de resistência, memórias de um projeto alternativo ao projeto do templo, da sinagoga e, precisa dizer, das próprias igrejas já que vinham fechando espaço à participação das mulheres.

Em Betânia Jesus reconhece o direito de Maria ser a discípula que, sentada aos pés do mestre, ouve a palavra. Em Betânia, Marta proclama a fé das comunidades que outros evangelistas tinham colocado na boca de Pedro: “Senhor, eu creio firmemente que tu és o Cristo, o Filho de Deus, aquele que deve vir ao mundo” (Jo 11,27).

Em Betânia está a casa de Simão, o leproso, onde a unção de uma anônima mulher consagra Jesus dando-lhe a coragem de enfrentar a morte. E em memória dela, terá que ser anunciado o “evangelho”: os pobres são os ungidos de Deus, os protagonistas do Reino.

A narrativa de João vai além: é Maria, a discípula atenta, que unge Jesus. Mas ela não derrama o perfume na cabeça dele. Ela unge os pés de Jesus e ao enxugá-los com seus cabelos, unge a sua própria cabeça! Justamente quando alguém estabelecia: “eu proíbo que a mulher ensine e que mande nos homens. Ela fique em silêncio!” (1Tm 2,12), o evangelho de João nos propõe que, em Betânia, casa de Jesus, nossa e de todos os pobres, não deve haver discriminação. E, por fim, Betânia será o último lugar onde Jesus vai conduzir seus discípulos e será elevado ao céu. A casa dos pobres é o lugar onde o céu e a terra sempre se encontram.

A casa, a mesa e o pão repartido tornam-se, assim, o sinal da presença viva de Jesus, memorial eterno da nova aliança no seu sangue. Uma casa de irmãos e irmãs. Nem palácios, nem templos, nem quartéis, nem armazéns, nem bancos, nem especulações financeiras podem definir o que é e como deve ser a nossa casa. Jesus nos mostrou que as leis da casa comum - a “economia” - devem ser determinadas pela “Justiça do Reino de Deus” que devemos procurar em primeiro lugar.

A casa na qual Jesus entra, senta e come é muito diferente do palácio de Herodes, do quartel de Pilatos, da sinagoga dos escribas e do templo dos sumos sacerdotes.

É uma casa onde encontram a cura a sogra de Pedro, o criado do centurião, a filha da mulher siro-fenícia; uma casa destelhada para que o paralítico possa ser descido até diante de Jesus. Uma casa onde Jesus come com os publicanos e os pecadores; uma casa onde Jesus acorda a menina de doze anos e manda dar-lhe de comer.

É uma casa na qual os irmãos, as irmãs e mãe de Jesus são os que sentam ao redor dele e fazem a vontade do Pai.

É a casa onde Jesus desafia os discípulos colocando-os diante de um menino: quem quiser ser o primeiro seja o último e o escravo de todos. A casa onde Jesus provoca os discípulos a colocar os direitos das mulheres na frente dos deles.

É a casa indicada pelo escravo, carregador de água, na qual o grupo de Jesus celebrará a sua Páscoa. Uma casa e uma mesa na qual Jesus está como o empregado que serve, como o escravo que lava os pés.

É nesta casa e nesta mesa que Jesus poderá ser reconhecido ao partir o pão.

Esta é a “ecologia integral” que Jesus assumiu e viveu em todas as casas em que ele entrou e que o levou a enfrentar a perseguição e o martírio.

 

Sandro Gallazzi

Bento Gonçalves, RS, Brasil